sexta-feira, 27 de março de 2015

A visita cruel do tempo. Lembranças

Há livros que permanecem com a gente por um bom tempo, se não para toda a vida. Desde que li A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan, trechos da história sempre aparecem como lampejos em minha mente. Eles chegam assim, sem mais nem menos, em pequenos flashes, sem que eu me lembre de imediato de que lembranças surgiram. Às vezes penso que foi de um filme que assisti, de tão nítidas essas imagens chegam, aí vou puxando pela memória e acabo no livro de Jennifer. Sim, as cenas são do livro, e acho que elas vão me acompanhar para sempre.

Neste mês de março, em que me propus a ler somente mulheres escritoras, a lembrança de Jennifer e seu livro foram constantes, e percebi que não cheguei apostar no blog minhas impressões sobre a obra. Na verdade, fiz isso em outro canal, no Cubo 3, onde escrevi “resenhas” por um tempo. Assim, transcrevo abaixo o texto que foi publicado naquele site, com pequenos ajustes, para registrar aqui também o que a leitura significou para mim.

“Tempo. Esse implacável

Inspirada na genial obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, a escritora americana Jennifer Egan escreveu um dos mais ecléticos livros que li: A visita cruel do tempo, título que arrebatou críticas e distinções, como o Tournament of Books, competição mata-mata, criada em 2005 pela revista eletrônica americana The Morning News em parceria com a livraria independente Powell´s, de Portland, Oregon, e que originou a Copa de Literatura Brasileira.

Logo nas primeiras páginas do livro, publicado no Brasil pela Intrínseca, no início do ano, com tradução de Fernanda Abreu, a inspiração na monumental obra de Proust aparece em todo o seu esplendor, na seguinte citação:

Alegam os poetas que, ao adentrar alguma casa ou algum jardim onde moramos quando jovens, reencontramos por um instante aquilo que já fomos. São peregrinações muito arriscadas, que produzem em igual medida sucessos e desilusões. Esses lugares fixos, contemporâneos de outros anos, é dentro de nós mesmos que mais convém encontrá-los.”

E o que se segue, no livro de Jennifer, é uma sucessão de contos contemporâneos, que cobre o período de 1979 a 2020, tendo o universo da música como ponto central e a implacável passagem do tempo e seus efeitos, quase sempre nefastos, em nós. Mas o que chama mais a atenção na obra é o estilo narrativo da autora e sua habilidade técnica em escrever ora na primeira, na terceira e ainda na segunda pessoa, o que é mais difícil, além de uma experiência ousada: uma apresentação de PowerPoint que, a princípio, parece sem nexo, mas que se torna pouco a pouco um recurso ágil, divertido e próprio para narrar parte da história do ponto de vista de uma menina de 12 anos.

Utilizando das várias técnicas narrativas, Jennifer constrói os capítulos, num total de 13, sendo um deles em forma de artigo jornalístico com notas de rodapé. Confesso que achei um pouco enfadonho, pois nunca fui muito adepta dessas notas que, embora sirvam para explicar e ampliar alguma informação, desviam a atenção e dificultam a retomada do texto.

Não é fácil tentar resumir a obra, constituída de histórias que se intercalam, nem sempre em ordem cronológica dos fatos, para mostrar o efeito do tempo, por vezes devastador, na vida das pessoas. Assim, o livro começa num determinado período da vida de Sascha, uma mulher de 36 anos, às voltas com a sua cleptomania e chateada por ter sido demitida do emprego, por seu chefe Bennie, depois de anos de trabalho. Num encontro com Alex, um homem mais jovem, ela rouba uma carteira, e tenta se livrar de seus problemas no divã do analista. Mais para frente sua trajetória será retomada, seja antes ou depois desse período.

No capítulo seguinte a história se abre com Bennie, o então patrão de Sascha, mas em um fase anterior ao desemprego da cleptomaníaca. À frente o tempo retrocede ainda mais para encontrarmos Bennie jovem, na época do colégio, com seus inseparáveis amigos Scotty, Rhea, Alice e Jocelyn, com os quais forma uma banda musical. Esses personagens serão também retomados mais para frente e assim sucessivamente.

Bennie, inspirado no seu mentor Lou, um produtor musical viciado em cocaína, se lança nesse universo, sendo responsável por lançar um grupo musical de sucesso, os Conduits, do qual o baterista Bosco, eletrizava a plateia. Mais para frente encontraremos um Bosco decaído, velho, gordo, tentando se reerguer. É dele uma das frases mais contundentes do livro, que trata exatamente dos estragos que o tempo faz:

É essa a realidade, não é? Vinte anos depois, a sua beleza já foi para o lixo, especialmente quando arrancaram fora metade das suas entranhas. O tempo é cruel, não é? Não é assim que se diz?

Algumas histórias são mais interessantes do que as outras, como a da assessora de imprensa, La Doll, que cai em desgraça. Primeiro a vislumbramos, brevemente em todo o seu esplendor, para depois encontrá-la simplesmente como Dolly, num capítulo todo seu, no qual conhecemos sua filha Lulu, de nove anos, e sua tentativa de retornar ao mercado numa arriscada empreitada para melhorar a imagem de um general implicado em genocídio.

Mas é, de fato, o capítulo feito com o recurso do PowerPoint que mais encanta. Nele, a menina Alison Blake, filha de Sascha, fala das pausas da música, uma fixação de seu irmão, e revela partes da história dos pais já retratados em outras épocas, em capítulos anteriores. Em dado momento, ela também parece ser atingida pela questão do tempo, quando revela seus medos:

Do que eu sinto medo
De que as placas de energia solar sejam uma máquina do tempo.
De que eu seja um adulta voltando a este mesmo lugar depois de muitos anos.
De que os meus pais estejam mortos e a nossa casa não seja mais nossa.
De que ela seja uma ruína caindo aos pedaços sem ninguém dentro.
Morarmos todos juntos nessa casa era uma delícia.
Mesmo quando a gente brigava. Parecia que nunca ia terminar. Vou sentir saudades para sempre.

A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan, que participou da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty em 2012, é um livro gostoso de se ler, no qual o leitor se identifica facilmente, sobretudo com relação à passagem do tempo, esse implacável tempo que chega irremediavelmente para todos nós."

(Publicado originalmente em Cubo 3) 

quarta-feira, 4 de março de 2015

Personagens femininas marcantes

Se é fato que a figura masculina do herói pode ser encontrada em boa parte da literatura mundial, com belos personagens, não é menos verdade que a feminina também gerou grandes e fascinantes heroínas. São muitas delas que dão o tom e o charme, constituindo-se no cerne da história de forma a torná-la ainda mais interessante.

Não é à toa que Tolstói afirmou ser a mulher “uma substância tal, que, por mais que a estudes, sempre encontrarás nela alguma coisa totalmente nova.” Afinal, elas são surpreendentes

Nesta semana que antecede ao Dia Internacional da Mulher, pensei qual personagem feminina da literatura é minha preferida. Tentei escolher uma, pensei em cinco, e não poderia ser diferente, porque para mim elas são inesquecíveis.


Clara, de A Casa dos Espíritos (Isabel Allende)

Claríssima, claravidente, Clara tinha dons que se apresentaram ainda em criança. Dona de uma sensibilidade grande, era muito doce, mas ao mesmo tempo exalava uma força que cativava a todos ao seu redor, inclusive a mim, leitora. Fascinante.


Blimunda Sete-Luas, de Memorial do Convento (José Saramago)

Nascida Blimunda de Jesus, ela foi batizada pelo padre Bartolomeu Lourenço de Blimunda Sete-Luas. É uma mulher do povo, forte e leal, que vive um amor intenso – e lindo - com Baltasar, chamado de Sete-Sóis. Tinha o dom de, em jejum, ver o interior das pessoas e das coisas, possibilitando que recolhesse “vontades”.



A mulher do médico, de Ensaio sobre a Cegueira (José Saramago)

Protagonista do romance, ela não tem seu nome revelado, assim como os demais personagens, sendo identificada como a mulher do médico oftalmologista, durante a epidemia de uma cegueira branca que acometeu a cidade onde vive. Dos moradores é a única que enxerga, que vê realmente, em todos os sentidos, a realidade e o que acontece à sua frente, tornando-se assim a condutora e a líder em uma terra de cegos.


Úrsula Iguaran, de Cem Anos de Solidão (Gabriel García Marquez)

A matriarca da família Buendia-Iguaran, Úrsula é uma mulher de muita fibra e coragem, que fincava os pés no chão e garantia a sobrevivência de todos. Viveu perto dos 122 anos, completamente cega, mas sem que a família soubesse, pois conseguia deslocar-se na casa com muita facilidade.


Capitu, de Dom Casmurro (Machado de Assis)

Forte e envolvente, Capitu é uma das personagens literárias mais discutidas e famosas, pela dubiedade de seus atos e olhar. Seus olhos, aliás, profundos e diferentes, de acordo com a conveniência, foram descritos como “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” ou “olhos de ressaca”.  Uma personagem bem construída.

Fiquei pensando o porquê de essas personagem terem me marcado tanto. Não sei, talvez a força, o fato de serem diferentes..., contudo, percebi um fato em comum entre elas, algo que tem a ver com a visão, com os olhos, com o enxergar. Acho que elas têm uma maneira diversa de perceber o mundo, que foge do tradicional, conferindo um quê de liberdade. Talvez seja isso.