Há quem diga que Tia Júlia e o Escrevinhador não está
entre os melhores romances de Mario Vargas Llosa, ou mesmo dos escritores de língua
latino-americana. Pode até ser verdade, mas é, com certeza, um dos mais
divertidos e deliciosos de se ler. Pelo menos foi isso o que senti quando li:
diversão pura, além da curiosidade e da identificação com um dos personagens
principais – Pedro Camacho.
O personagem
trata-se de um escritor de radionovelas boliviano, que vai para o Peru
trabalhar na Rádio Central, emissora onde Varguitas (Vargas Llosa) trabalha.
Autor dedicado e de mão cheia, logo cai nas graças dos ouvintes, mas no
decorrer da trama, com tantas histórias e personagens de novelas criados, ele
começa a confundir as tramas.
E é exatamente aí
que faço um paralelo, porque vez por outra, depois de tantos livros lidos,
trechos das histórias e alguns personagens me vem à mente, assim sem mais nem
menos, obrigando-me a puxar pela memória para saber de qual obra pertencem.
Porém, nada que uma boa circunspecção não consiga desvendar.
Similaridades à parte,
o romance, embora ficcional, traz muitos dos fatos reais da vida de Mario
Vargas Llosa, que na mocidade sonhava em ser escritor, trabalhou em uma rádio e
aos 18 anos se apaixonou pela Tia Júlia, a irmã da mulher do seu tio, que tinha
32 anos, um escândalo na época. Dessa forma, vemos Varguitas ensaiar os
primeiros passos na escrita, cujos rascunhos quase sempre vão parar na lata do
lixo, e o desenrolar do romance com Tia Júlia.
É quando ele conhece
Pedro Camacho, um autor que cria tramas mirabolantes, mas que encantam os radiouvintes.
Excêntrico, workaholic e autossuficiente, Camacho fascina Mario, com quem trava
uma amizade inusitada. Com o sucesso alcançado, o escritor chega a escrever dez
novelas e, em dado momento, sobrecarregado de trabalho, começa a misturar os
enredos e os personagens. Nesse meio tempo, o romance de Varguitas e Tia Júlia
é descoberto pela família.
Dessa forma correm
duas histórias paralelas, a do protagonista Mario e a de Pedro Camacho, cujos capítulos
ainda são entremeados pelas histórias do escritor boliviano, de forma que
ficamos conhecendo o enredo e os personagens de algumas novelas. Nestas,
percebemos os desvarios da mente de Pedro Camacho, com a confusão das tramas e
dos personagens, até a última em que o próprio leitor já nem mais sabe quem é
quem.
Essa forma
de escrever, os romances dentro do romance principal, lembrou-me Se um viajante numa noite de inverno, de
Ítalo Calvino, cuja trama começa com o Leitor, personagem principal, comprando
um livro e começando a ler Se um Viajante
numa Noite de Inverno, romance que se inicia numa estação ferroviária
enfumaçada, mas à medida que o Leitor avança na leitura, ele percebe que, por
um erro de encadernação, a história repete até o fim as páginas iniciais. O
Leitor volta então à livraria, adquire um novo exemplar, mas este narra outra
história, apresentando também problemas de encadernação. E isso vai se repetir
até o final do livro, de forma que há a história principal do Leitor, que até
conhece uma Leitora também em busca do mesmo livro, e várias histórias dos
romances que eles vão adquirindo no decorrer da trama.
Em Tia Júlia e o Escrevinhador, porém, o
que dá charme é saber que a história faz parte da própria história de Vargas
Llosa, e dos seus primeiros passos para se tornar um grande escritor, cujo
alcance extrapolou os limites do Peru e da América Latina, até a conquista do
Prêmio Nobel de Literatura, em 2010. Com certeza, a epígrafe que ele escolheu
para iniciar Tia Júlia tem muito a
ver com sua obstinação pelo exercício da escrita:
Escrevo. Escrevo que escrevo. Mentalmente me vejo
escrever que escrevo e também posso me ver a me ver escrevendo. Lembro de mim
já escrevendo e também me vendo escrever. E me vejo lembrando que me vejo
escrever e me lembrando que me vejo lembrando que escrevia e escrevo me vendo
escrever que me lembro de ter me visto escrever que me via escrevendo que
lembrava de ter me visto escrever que escrevia e que escrevia que escrevo que
escrevia. Também posso me imaginar escrevendo que já havia escrito que me
imaginaria escrevendo que havia escrito que imaginava a mim escrevendo que me
vejo escrever que escrevo.
Salvador Elizondo, o
grafógrafo.
Mario Vargas Llosa
sempre me encanta com suas histórias.
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