Julio Cortázar, escritor argentino e um dos mais importantes
nomes da literatura latino-americana, morreu há exatos 30 anos, deixando uma
obra em que se sobressaem seus fantásticos contos curtos. Contudo, um de seus
livros mais conhecidos e difundidos é um romance: O jogo da amarelinha (Rayuela,
no original), publicado em 1963 e que se constitui em uma das obras mais
inovadoras e originais da literatura mundial.
O livro possibilita inúmeras leituras, rompendo com a forma
clássica de ser ler do início ao fim. Nele é o leitor quem decide como e de que
maneira quer ler, podendo começar pelo capítulo 1 e seguir em frente até o 56,
concentrando-se assim na história propriamente dita de um triângulo amoroso. Ou
embarcar pelo 73 e se aventurar na ordem sugerida pelo autor ao final de cada
capítulo, fazendo assim uma viagem pelos acontecimentos da vida dos personagens
e do narrador, apreciar citações literárias de grandes autores, textos que
falam sobre a literatura atual, poemas, desvarios, cartas, entre outros.
Fascinante, não?
Sem dúvida. No entanto, não é uma leitura fácil e prazerosa e
foi essa a sensação que tive ao ler a “amarelinha”, tamanha a confusão que se
formou em minha mente. Precisei parar, ler algumas informações a cerca do
romance e depois iniciar novamente – pela ordem sugerida pelo autor, já que eu
queria ter a noção dessa leitura desordenada. E foi bom, porque está aí a graça
de O jogo da amarelinha, pois a
história em si, pelo menos para mim, não me fisgou de fato.
A proposta em se pular de um capítulo a outro é que faz a
diferença na leitura. Uma forma estética interessante, mas também torturante de
envolver o leitor. Há passagens belíssimas como esta, do capítulo 7, cujo
primeiro parágrafo descreve:
Toco a tua boca, com um
dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse
saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e
basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada
vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto,
uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para
desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro
compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a
minha mão te desenha.
No entanto há outras em que, apesar da forma divertida, dá um
nó na sua cabeça, como a do capítulo em que se intercalam duas narrações ao
mesmo tempo. À primeira vista achei que havia um defeito, um erro de revisão no
livro, mas depois entendi a dinâmica. O que começava na primeira linha, tinha
continuação na terceira e depois na quinta e assim sucessivamente. O texto da
segunda linha, prosseguia na quarta, em seguida na sexta e assim por diante. E
ainda o trecho do capítulo 69, em que a grafia se apresenta complexa, errada, exdrúxula:
Ingrata supreza foi ler
no “Ortográfiko” a notisia de aver falesido em San Luis Potozi, no dia 1º de
marso último, o tenente koronel (promovido a koronel para ser apozentado)
Adolfo Abila Sanhes. Foi uma surpeza porkê não tivéramos notisia de ikê se
axasse de kama. Além do mais, já avia tempo kê o tínhamos katalogado entre
nossos amigos os suisidas i, numa okasião, “Renovigo” referiuse a sertos
sintomas observados nele. Todavia, susede kê Abila Sanhes não eskolieu o
revólver komo o eskritor antiklerikal Giyermo Delora, nem a korda komo o
esperantista fransês Eugène Lanti.
Como jogo estético, sem dúvida, é bastante inovador, mas
confesso que me impacientou um pouco, sem falar na história propriamente dita
que não via a hora de terminar. Ela até que começou bem, eu estava gostando,
saboreando cada palavra, como no início da trama:
Encontraria a Maga?
Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o
Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me
entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por
vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada
sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural
atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me
da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava,
de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as
pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com
linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o
tubo de pasta dentifrícia.
Ou ainda nesta:
Preferíamos o encontro
casual na ponte, no terraço de um café num cineclube ou, talvez, curvados sobre
um gato em qualquer pátio do bairro latino. Andávamos por Paris sem nos
procurarmos, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar.
O começo me seduziu, me “pegou”, a leitura foi fluindo, até
que as confusões começaram. Ora a personagem era a Maga, ora aparecia uma
Lúcia... até juntar A com B e entender que eram a mesma pessoa, custou. Da
mesma forma, atinar que Horácio e Oliveira também eram um só e que Rocamadour
não era outro senão o filho da Maga foi outra aventura.
A propósito de Horácio/Oliveira preciso dizer que é um dos
personagens mais desprezíveis que conheci. “Pseudointelectual”, ele é um
argentino, que se instala em Paris para estudar, isso aos 40 anos, mas o
projeto não acontece, como tudo em sua vida, pois está sempre em busca de algo
que ele mesmo não sabe o que seja. Junto com outros amigos funda o “Clube da
Serpente”, para discutir arte, filosofia e política, e ouvir jazz, aliás, uma
das paixões de Cortázar.
Maga, por outro lado, é uma uruguaia, que foi para Paris com
o filho pequeno porque os pais queriam que ela abortasse. É uma mulher simples,
distraída, de pouco conhecimento, mas que acaba se envolvendo com
Horácio/Oliveira e se integra ao Clube da Serpente, embora, muitas vezes, se
sinta à margem destes.
O triângulo amoroso se forma com Ossip Gregorovius, um romeno
que diz ter três mães diferentes. O destino deles é incerto, por isso é difícil
saber o que acontece, principalmente com a Maga, apenas deduções. Já com
relação a Horácio/Oliveira podemos ainda vislumbrar sua trajetória na segunda
parte do livro, quando ele retorna à Argentina e reencontra seu amigo Traveler,
casado com Talita. Confesso que não gostei muito dessa sequência e foi um parto
terminá-la.
Por que não o abandonei? Porque tinha de lê-lo para o Clube
de Leitura que frequento e, acima de tudo, era um desafio. Queria saber onde
iria chegar, como iria terminar, se é que haveria um desfecho. Mas o livro não
tem um fim. É uma história cíclica, que dá voltas e se repete sempre. Talvez eu
não tenha compreendido bem a obra e seu alcance, suas múltiplas possibilidades,
mas o fato é que elas não funcionaram muito bem pra mim. Afinal, nem cheguei a
ter empatia pelo personagem principal, aliás não gostei de nenhum personagem...
talvez um pouco da Maga, mas só um pouco. E isso é muito pouco.
Na definição de Cortázar, O
jogo da amarelinha é “muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros”. É uma
obra ambígua e complexa, que eu tive muita vontade de ler tempos atrás e que
talvez ainda pensasse em ler algum dia... Acabei lendo. Posso dizer que é, sem
dúvida, um dos romances mais originais que tive a oportunidade de ler, mas,
admito, sem culpa nenhuma, que o livro não me trouxe prazer enquanto leitora. Já os
contos de Cortázar, esses sim são maravilhosos, inspiradores e inesquecíveis.
Vou me concentrar neles.
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