Na última semana, a
questão do lado emocional dos jogadores brasileiros na Copa do Mundo ganhou a
manchete dos jornais, telejornais e redes sociais, tornando-se um dos assuntos mais debatidos
entre os torcedores.
Isso me fez lembra
de uma crônica de Nelson Rodrigues que, escrita há mais de 50 anos, já fazia
referência aos “males da alma” - Freud no
futebol -, cujas ideias do escritor são bastante interessantes e atuais
nesse momento da seleção brasileira.
Achei oportuno
publicá-la nesse dia de hoje. Confira:
"Freud no futebol
(Manchete Esportiva,
7/4/1956)
Um amigo meu que foi
aos Estados Unidos informa que, lá, todo mundo tem o seu psicanalista. O
psicanalista tornou-se tão necessário e tão cotidiano como uma namorada. E o
sujeito que, por qualquer razão eventual, deixa de vê-lo, de ouvi-lo, de
farejá-lo, fica incapacitado para os amores, os negócios e as bandalheiras. Em
suma: — antes de um desses atos gravíssimos, como seja o adultério, o
desfalque, o homicídio ou o simples e cordial conto-do-vigário, a mulher e o
homem praticam a sua psicanálise.
O exemplo dos
Estados Unidos leva-me a pensar no Brasil ou, mais exatamente, no futebol
brasileiro. De fato, o futebol brasileiro tem tudo, menos o seu psicanalista.
Cuida-se da integridade das canelas, mas ninguém se lembra de preservar a saúde
interior, o delicadíssimo equilíbrio emocional do jogador. E, no entanto, vamos
e venhamos: — já é tempo de atribuir-se ao craque uma alma, que talvez seja
precária, talvez perecível, mas que é incontestável.
A torcida, a
imprensa e o rádio dão importância a pequeninos e miseráveis acidentes. Por
exemplo: — uma reles distensão muscular desencadeia manchetes. Mas nenhum
jornal ou locutor jamais se ocuparia de uma dor-de-cotovelo que viesse acometer
um jogador e incapacitá-lo para tirar um vago arremesso lateral. Vejam vocês:
há uma briosa e diligente equipe médica, que abrange desde uma coriza
ordinaríssima até uma tuberculose bilateral. Só não existe um especialista para
resguardar a lancinante fragilidade psíquica dos times. Em consequência, o
jogador brasileiro é sempre um pobre ser em crise.
Para nós, o futebol
não se traduz em termos técnicos e táticos, mas puramente emocionais. Basta
lembrar o que foi o jogo Brasil x Hungria*, que perdemos no Mundial da Suíça.
Eu disse “perdemos” e por quê? Pela superioridade técnica dos adversários?
Absolutamente. Creio mesmo que, em técnica, brilho, agilidade mental, somos
imbatíveis. Eis a verdade: — antes do jogo com os húngaros, estávamos
derrotados emocionalmente. Repito: — fomos derrotados por uma dessas
tremedeiras obtusas, irracionais e gratuitas. Por que esse medo de bicho, esse
pânico selvagem, por quê? Ninguém saberia dizê-lo.
E não era uma pane
individual: — era um afogamento coletivo. Naufragaram, ali, os jogadores, os
torcedores, o chefe da delegação, a delegação, o técnico, o massagista. Nessas
ocasiões, falta o principal. Estão a postos os jogadores, o técnico e o
massagista. Mas quem ganha e perde as partidas é a alma. Foi a nossa alma que
ruiu face à Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai.
E aqui pergunto: —
que entende de alma um técnico de futebol? Não é um psicólogo, não é um
psicanalista, não é nem mesmo um padre. Por exemplo: — no jogo Brasil x Uruguai
entendo que um Freud seria muito mais eficaz na boca do túnel do que um
Flávio Costa, um
Zezé Moreira, um Martim Francisco. Nos Estados Unidos, não há uma Bovary, uma
Karênina que não passe, antes do adultério, no psicanalista. Pois bem: —
teríamos sido campeões do mundo, naquele momento, se o escrete houvesse frequentado,
previamente, por uns cinco anos, o seu psicanalista.
Sim, amigos: — havia
um comissário de polícia, que lia muito X-9, muito Gibi. Para tudo o homem
fazia o comentário erudito: — “Freud explicaria isso!”. Se um cachorro era
atropelado, se uma gata gemia mais alto no telhado, se uma galinha pulava a
cerca do vizinho, ele dizia: — “Freud explicaria isso!”. Faço minhas as
palavras da autoridade: — só um Freud explicaria a derrota do Brasil frente à
Hungria, do Brasil frente ao Uruguai e, em suma, qualquer derrota do homem
brasileiro no futebol ou fora dele.
* Hungria 4 x 2
Brasil, 27/6/1954, em Berna. Uruguai 2 x 1 Brasil, 16/7/1950, no Maracanã."
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