Aos 460 anos, a
cidade de São Paulo não para de crescer e de se transformar. Do pequeno povoado
que surgiu em 25 de janeiro de 1554, com a construção de um colégio jesuíta,
até os dias atuais em que ostenta a posição de principal centro financeiro,
corporativo e mercantil da América do Sul, a cidade se metamorfoseou e se
multiplicou, passando por períodos de romantismo, desenvolvimento e turbulências
tão bem retratados na literatura brasileira.
Para lembrar uma São
Paulo antiga, da década de 1960, e seus personagens marginalizados, vale a pena
ler Malagueta, Perus e Bacanaço,
livro de contos de João Antônio, republicado pela Cosac Naify em 2004. Em sua
estreia literária, o escritor paulistano foi criador do conto-reportagem no
jornalismo brasileiro, dando vida a figuras como malandros, bêbados,
prostitutas, cafetões, entre outros que habitam as periferias das grandes
cidades.
O livro divide-se em
três partes. A primeira intitula-se “Contos Gerais”, com três pequenos contos: Busca, Afinação da arte de chutar tampinhas e Fujie. A segunda é formada por dois contos reunidos sob o título
“Caserna”: Retalhos de fome numa tarde
de G.C e Natal na cafua. A terceira – e que se constitui no ponto alto da
obra – chama-se “Sinuca” e traz quatro contos: Frio, Visita, Meninão do Caixote e Malagueta, Perus e Bacanaço, sendo estes
dois últimos os contos maiores e mais representativos da obra.
Essa terceira parte traz,
em sua epígrafe, uma homenagem a Boca Livre, um vagabundo da Lapa-de-Baixo, e à
Carne Frita (Walfrido Rodrigues dos Santos), figura verídica, considerado o maior jogador da história de sinuca
do Brasil, hoje com 84 anos:
À picardia, à lealdade
e – em especial – à beleza de estilode jogo
do
muito considerado mestre
CARNE FRITA,
professor de encabulação e desacato
e cobra de maior taco dos últimos anos,
consagro
com a devida humildade
estas histórias curtas.
O livro estava
pronto em 1960, quando em agosto desse mesmo ano um incêndio pôs fim à casa de
João Antônio, destruindo roupas, móveis, estrutura e, claro, o livro. Foi um
choque para o escritor que guardava objetos e escritos desde os cinco anos de
idade em seu quarto. Aliás, João Antonio dizia que não escrevia em outro lugar
a não ser naquele local.
Como a vida é feita
de adversidades e reviravoltas e, para sobreviver, precisamos nos adaptar a
tudo, o escritor aprendeu a escrever em outro canto, chegando a afirmar que
“qualquer boteco é lugar para escrever quando se carrega a gana de transmitir.
Gana é um fato sério que dá convicção”. E ele passou então a escrever em
pensões, bibliotecas e quartos mesquinhos de hotel, durante os intervalos do
trabalho em escritórios e aos domingos, muitas vezes se esquivando de amigos,
se enclausurando.
O resultado foi mais
do que gratificante, pois o livro ganhou o prêmio Fábio Prado da União Brasileira de Escritores e dois Jabutis (Revelação de Autor e Melhor
Livro de Contos do Ano) da Câmara Brasileira do Livro.
O conto que dá
título ao livro – Malagueta, Perus e
Bacanaço – acontece em uma noite, num bar de sinuca, onde três parceiros malandros
se encontram, e é dividido em seis
partes que destacam os nomes dos bairros por onde os personagens vão caminhar
noite à dentro, em busca de oportunidades de fazer dinheiro: Lapa, Água Branca,
Barra Funda, Cidade, Pinheiros e, terminando de volta à Lapa. E se tivesse que
ter uma trilha sonora, ela teria como carro-chefe a música “Ronda”, de Paulo
Vanzolini, cuja melodia e letra não saiam da minha cabeça durante a leitura.
No conto, Malagueta,
o mais velho, que tem esse nome por causa da sua paixão por comidas
apimentadas, busca dar retaguarda aos golpes praticados pelos parceiros. Bom na
arte da sinuca, Malagueta é descrito dessa forma por João Antônio: “O velho olhando o
cachorro. Engraçado - também ele era um virador. Um sofredor, um pé-de-chinelo,
como o cachorro. Iguaizinhos...”.
Bacanaço é o
malandro no seu auge, na idade mediana, que gosta de se vestir bem, daí seu
apelido. Gingador, sabe ludibriar com sua fala e seus modos finos, apesar de
ser tão pobre quando os outros. Para João Antonio, “Bacanaço sustentava o
paletó no antebraço, seus sapatos brilhavam, engraxados que foram outra vez, e
a mão direita, manicurada, viajava para cima e para baixo, levando e trazendo
um cigarro americano...”.
Finalmente Perus,
cujo nome representa o bairro onde mora, é o novato da turma. Talentoso na
sinuca, é ele quem vai desafiar outros jogadores e tentar conseguir dinheiro
fácil: “O menino Perus tem seu lugar de taco, confiança de alguns patrões de
jogo caro, devido à habilidade que na sinuca logrou desenvolver nas difíceis
bolas finas, colocadas em diagonal na mesa. O menino Perus mal e mal se aguenta
– fugido do quartel, foge agora de duas polícias. A Polícia do Exército e a
polícia dos vadios. Uma semana, muitas vezes, na Lapa. Nas bocas do inferno se
defende, se arranja pelas ruas, trabalha nas conduções cheias, surrupia
carteiras. Deixa ficar e fica uma semana. A mesma camisa, o mesmo sono, a fome
de dias...”.
Há ainda que
ressaltar o estilo de escrita de João Antônio, o da oralidade, criando assim uma
espécie de regionalismo urbano, com linguagem, jeitos, códigos, gíria e sintaxe
malandra, próprios das figuras marginalizadas nas grandes cidades. Confesso que
no começo estranhei, mas ao avançar na leitura me apaixonei, principalmente por trechos como este:
Estavam os três quebrados, quebradinhos. Mas
imaginavam marotagens, concluios, façanhas, brigas, fugas, prisões – retratos
no jornal e todo o resto –, safadezas, tramoias; arregos bem arrumados com
caguetes, trampolinagens, armações de jogos que lhes dariam um tufo de
dinheiro; patrões caros aos quais fariam marmelo, traição; imaginavam jogos
longínquos, lá pelos longes dos subúrbios, naquelas bocas do inferno nem
sabidas pela polícia; principalmente imaginavam jogos caros, parceirinhos
fáceis, que deixariam falidos, de pernas para o ar. E em pensamento
funcionavam. E os três comendo as bolas, fintando, ganhando, beliscando,
furtando, quebrando, entortando, mordendo, estraçalando...
Vale lembrar que Malagueta, Perus e Bacanaço foi adaptado
para o cinema em 1977, com o título de O
jogo da vida, sob a direção de Maurice Capovilla. A conferir.
João Antônio
escreveu 16 livros, entre estes os premiados Leão-de-chácara, Dedo-duro, Abraçado ao meu rancor e Guardador.
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