Certo dia, um amigo do escritor, jornalista e crítico literário, José Castello, lhe telefonou para perguntar se em 1976 havia presenteado seu pai, José Ribamar, com um exemplar de Carta ao pai, de Franz Kafka. É que ele havia encontrado, em um sebo no Rio de Janeiro, o livro com a dedicatória assinada por um tal de José, cuja caligrafia, lembrava a de Castello.
Admirado, o
escritor confirmou as suspeitas do amigo, recebendo deste, pelo correio, o
exemplar com que presenteara o pai há cerca de 40 anos. Já de posse do livro,
Castello o folheou para ver se havia vestígios de que o pai o lera, mas nada
encontrou.
Deste acaso
surgiu a ideia de Ribamar, segundo
romance de José Castello, que mistura crítica literária, com biografia e memórias.
Na verdade, uma história de ficção, entrelaçada por fatos reais. O livro,
inclusive, ganhou o Prêmio Jabuti 2011 na categoria romance.
Carta ao Pai, vale lembrar, trata-se da publicação
póstuma de uma carta que Kafka escreveu ao pai e nunca a enviou. Nela, o
escritor fala e reflete sobre a relação conturbada com o pai, Hermann Kafka, um
homem autoritário e de personalidade forte, com quem busca, pela escrita,
ajustar contas.
Castello, que também teve uma relação difícil com seu
pai, teve identifcação imediata com Kafka quando leu Carta ao Pai. Por isso, discorre várias vezes a ela em seu livro,
além de citar outra obra do escritor: A
metamorfose.
Para escrever Ribamar, processo que
durou três anos, Castello viajou até Parnaíba (PI), cidade onde seu pai morou
quando criança, saindo de lá na maturidade rumo ao Rio de Janeiro. Ali, mais do
que vestígios da passagem do pai e da verdade que o rigor de uma biografia
pede, o escritor foi em busca da invenção, para criar assim uma ficção em torno
da figura de José Ribamar e da sua relação com ele. Isso está bem claro na
passagem em que Castello refere-se a história contada pelo pai sobre as raízes
da família:
Você me falou, um dia, da falsa origem
da família. Em Lisboa, um jovem comerciante desposa uma Castelo Branco. Após as
núpcias, o casal emigra para o Brasil. Na costa do Ceará, um naufrágio. A
mulher morre, ele sobrevive. Para homenageá-la, o marido, um Queiroz, adota o
sobrenome da esposa. Dele – como uma nave que se prende a um fio imaginário –
descende toda a família no Brasil.
“Investigue isso melhor”, meu tio
sugere. Não farei isso: não quero correr o risco de perder a lenda que você me
deu. Prefiro conservá-la, mesmo à custa da verdade. A verdade esfaqueia. A
ficção enrijece.
Como um verdadeiro Castelo Branco
(pois o verdadeiro Castelo Branco, a julgar pela lenda, é falso), fico com a
ficção.
O processo
de criação teve início com várias anotações, que se acumulavam de forma
desordenada, até que Castello conseguiu encontrar uma estrutura para o livro. E
ela surgiu a partir de uma canção de ninar, que seu pai supostamente cantava para
que ele dormisse, e que era cantada de geração em geração. A partitura da
canção, que tem 98 notas musicais, portanto, é que dá forma ao livro,
correspondendo, cada uma, a um capítulo. E cada nota corresponde a um tema,
como Parnaíba, Kafka, família, aves, infância e angústia, entre outros.
A narrativa
é envolvente e emociona. Além disso, a escrita de Castello é enxutíssima, encaixando-se
perfeitamente nas notas musicais da canção e nos temas desenvolvidos. E as
palavras, escolhidas com cuidado apurado, que só o exercício da reescrita
proporciona, soam como poesia, tornando a leitura deliciosa e, muitas vezes,
identificável com nossas próprias experiências.
Ribamar, de José Castello, foi publicado em
2010 pela Bertrand Brasil. E é um dos melhores livros que li.
(Publicado originalmente no Cubo 3 - http://cubo3.com.br/2011/12/07/ribamar-de-jose-castello/)
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