Há exatamente um ano
a cidade de Santa Maria e o Brasil inteiro foram surpreendidos com a tragédia
da Boate Kiss, onde 242 jovens morreram vítimas do incêndio que tomou conta da
casa noturna. Passado o tempo, ninguém foi condenado, apesar da catástrofe não
ter sido uma fatalidade. O local não tinha área de escape, os materiais eram
inadequados e a boate nunca funcionou com todas as licenças em dia. Negligência
e omissão do poder público. Vergonha e impunidade, sempre a mesma história.
Coincidentemente li,
no início deste ano, uma crônica que expressa de forma pungente o significado
dessa tragédia: O janeiro em que o Brasil
me perdeu, assinada pelo jornalista Marcelo Canellas. Publicada em 28 de
janeiro de 2013 no jornal Zero Hora,
a crônica abre o livro Províncias:
crônicas da alma interiorana, de Canellas, lançado em novembro do ano
passado pela Editora Globo.
Com uma trajetória
de mais de 25 anos como repórter, rodando pelo mundo, Marcelo Canellas testemunhou
diversos fatos da nossa história, mas carregando sempre consigo aquela alma
interiorana do Rio Grande do Sul. Nascido em Passo Fundo, ele morou e formou-se
em Santa Maria.
No livro ele reúne
70 crônicas curtas em que a cidade transparece nos mais inusitados lugares em
que esteve fazendo reportagens. Marcelo é um excelente observador da vida e
traduz, com sua prosa poética fluida histórias afetivas de fatos que estão no
cotidiano de todos nós. Talvez a melhor definição para ele seja a que ele próprio
se atribui: “um repórter peregrino e um cronista provinciano”, capaz de
expressar tão bem os sentimentos de cada um de nós, como naquela crônica sobre
a tragédia na Boate Kiss.
Para que ela não
caia no esquecimento e que os responsáveis sejam punidos, de forma que
catástrofes como essa não voltem a acontecer, reproduzo abaixo a crônica O janeiro em que o Brasil me perdeu, de
Marcelo Canellas:
“Eu hoje tenho 20 anos e quero me divertir. Meus pais
estão dormindo em casa e amanhã haveria um churrasco. Eu tenho a vida pela
frente e quero mudar o mundo. Mas também quero namorar, dançar, rir, andar a
esmo com amigos nas lombas íngremes da minha cidade. Eu sou feito da bafagem
úmida da Serra Geral, dos morros que circundam a Boca do Monte, do eco metálico
dos trilhos de outrora, da lembrança ancestral da Gare onde meus avós
trabalhavam. Ainda que eu não tenha nascido aqui, eu tenho o viço púbere do
futuro. Eu posso ter vindo das barrancas de Uruguaiana, das campinas de São
Borja, das grotas de Santiago do Boqueirão, das videiras de Jaguari, de São
Pedro do Sul, São Sepé, São Gabriel, Dom Pedrito, de cima da serra, não
importa. Santa Maria sou eu, cidade cadinho, generosa e aldeã, que nos pariu a
todos em seu útero colossal.
Eu sinto o afago do vento norte, eu vejo anciãs
tomando mate na janela e cadeiras nas calçadas da Vila Belga em uma tarde
quente de janeiro. Eu tenho o lastro interiorano de minha cidade, mas também as
narinas abertas, os ouvidos atentos, os sentidos despertos para o que enxergo
na face jovem de uma urbe sempre aberta ao novo, cosmopolita e inquieta,
convidando-me para a festa da vida. Por isso celebro, brindo, bailo. Tenho o
frescor do campus em meus modos, a avidez universitária do saber. Recebo,
faceiro e agradecido, convite do conhecimento, as portas do desconhecido a me
cortejar. Como eu não quereria viver? Então entro numa boate e não tenho mais
voz, não tenho mais planos, não tenho saída.
Rogo a todos os que andaram sobre os paralelepípedos
da Rio Branco para me salvar. Quero correr e suplicar socorro a quem me possa
acudir. A bênção, Carlos Scliar. A bênção, Raul Bopp. A bênção, velho Cezimbra
Jacques, meu Prado Veppo, a bênção Felippe d’Oliveira. Iberê Camargo, tu que
estudaste no Liceu de Artes e Ofícios, ali bem perto de onde a primeira faísca
espocou, a bênção. A bênção, todos os artistas e poetas da Boca do Monte.
Precisamos de vocês para explicar o sentido do inexplicável. Vocês, que tiveram
tempo para luzir, expliquem-nos: por que temos de findar?
Como posso adormecer, se mal despertei para o mundo?
Como posso abdicar, se não brinquei o suficiente, não amei o bastante, deixei
incompleto o edifício da minha história? Eu não choro só por mim, e nem meu
pranto cai sozinho. Minha cidade é hoje o Brasil em luto. Minha juventude
perdida é o meu país, perplexo e tonto, impotente a velar meu corpo. Santa
Maria, rogai por nós.”
Como sempre, teu blog trazendo preciosidades... Beijão
ResponderExcluirParabéns à autora do blog, pelo carinho, atenção e dedicação que empenhou ao escrever esta postagem, dar luz a um livro tão especial e à esta crônica do brilhante Canellas, tão precisa, cortante e marcante. Que Deus olhe por todos nós. Saúde e sucesso à autora!
ResponderExcluirUm grande abraço desta moça gaúcha que vos escreve, ainda tão mais moça à época da tragédia da boate Kiss. Poderia ser eu lá, como tantos. O sofrimento e a dor são coletivos, e, por tal evento e reverberações, creio que será eterno em nós. Abraços afetuosos!
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