sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Sábado dos meus amores

De alguns anos para cá, os quadrinhos brasileiros ganharam mais espaço com a produção e o lançamento de álbuns de qualidade inquestionável. Entre eles, Daytripper, a graphic novel de Fábio Moon e Gabriel Bá, publicada no Brasil pela Panini, que ganhou o Eisner em 2011 como melhor minissérie; o álbum Morro da Favela, de André Diniz, lançado em 2011 pela Leya Brasil, que alcançou o mercado exterior;  e Bando de Dois ( Zarabana Books) e Astronauta Magnetar (Graphic MSP), de Danilo Beyruth, que faz um belíssimo trabalho. Isso só para citar alguns.
 
Embora lançado em 2009, outro álbum também merece destaque por trazer à tona o cotidiano brasileiro de uma forma bastante poética e humana: Sábado dos meus amores, de Marcello Quintanilha, que foi publicado pela Conrad Editora num belo encadernado.
A HQ traz seis histórias, que se misturam entre crônicas e contos. A primeira, Plena de Flôroi é uma homenagem ao cronista Rubem Braga e sua crônica A borboleta amarela, escrita em 1952. Em apenas seis quadros, dispostos em uma página, Quintanilha consegue sintetizar a crônica e complementá-la com uma visão sensível. Não tem como não se emocionar.
As cinco histórias a seguir são um pouco mais longas, com exceção de Atualidade, também contada em uma página. Nesta um operário se ressente do resultado de um jogo de loteria. Os demais contos são: De como Djalma Branco perdeu o amigo em dia de jogo, no qual um torcedor fanático pelo Flamengo, morador na periferia do Rio de Janeiro, vive às voltas com as superstições do jogo
Dorso conta a história de um carregador que se autoflagela por não conseguir esquecer seu passado como trabalhador na roça; Escola primária remete à região nordeste do Brasil, onde uma garota se enamora de um jangadeiro; por fim, A fuga de Zé Morcela fala de um ajudante de circo que gosta de um jogo de carteado e um guarda-civil marcado pelo complexo de inferioridade.
São histórias simples, que retratam o dia a dia de pessoas simples, das quais se sobressai a humanidade de suas relações. Os finais parecem não ter desfecho, mas com uma visão mais atenta percebe-se o desenlance que o quadrinista quis dar. E os desenhos são bastante expressivos e impressionam pela força, como o último quadro do conto Escola Primária, que foca o rosto e o sorriso tímido da garota frente ao jangadeiro.
Artista autodidata por excelência, Marcello Quintanilha iniciou-se como quadrinista em 1988, desenhando histórias de terror e artes marciais. Na época, assinava sob o pseudônimo de Marcello Gaú.
Teve vários trabalhos publicados e prêmios conquistados no Brasil. Em 1999 a Conrad lançou seu primeiro livro, Fealdade de Fabiano Gorila. Em 2005 publicou seu segundo livro: Salvador, da coleção Cidades Ilustradas, da Casa 21.
Hoje Marcello reside em Barcelona, na Espanha, onde faz a série de quadrinhos Sept Balles Pour Oxford , da editora belga Editions du Lombard, junto com os roteiristas Jorge Zentner e Montecarlo. E colabora, também, para os jornais La Vanguardia e El País, como ilustrador.
Vale a pena conferir seus trabalhos.
 
(Publicado originalmente no Cubo 3 – http://www.cubo3.com.br  em 7/2/2012, com atualizações)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Tropeçando na "Amarelinha"

Julio Cortázar, escritor argentino e um dos mais importantes nomes da literatura latino-americana, morreu há exatos 30 anos, deixando uma obra em que se sobressaem seus fantásticos contos curtos. Contudo, um de seus livros mais conhecidos e difundidos é um romance: O jogo da amarelinha (Rayuela, no original), publicado em 1963 e que se constitui em uma das obras mais inovadoras e originais da literatura mundial.
 
O livro possibilita inúmeras leituras, rompendo com a forma clássica de ser ler do início ao fim. Nele é o leitor quem decide como e de que maneira quer ler, podendo começar pelo capítulo 1 e seguir em frente até o 56, concentrando-se assim na história propriamente dita de um triângulo amoroso. Ou embarcar pelo 73 e se aventurar na ordem sugerida pelo autor ao final de cada capítulo, fazendo assim uma viagem pelos acontecimentos da vida dos personagens e do narrador, apreciar citações literárias de grandes autores, textos que falam sobre a literatura atual, poemas, desvarios, cartas, entre outros.
Fascinante, não?
 
Sem dúvida. No entanto, não é uma leitura fácil e prazerosa e foi essa a sensação que tive ao ler a “amarelinha”, tamanha a confusão que se formou em minha mente. Precisei parar, ler algumas informações a cerca do romance e depois iniciar novamente – pela ordem sugerida pelo autor, já que eu queria ter a noção dessa leitura desordenada. E foi bom, porque está aí a graça de O jogo da amarelinha, pois a história em si, pelo menos para mim, não me fisgou de fato.
A proposta em se pular de um capítulo a outro é que faz a diferença na leitura. Uma forma estética interessante, mas também torturante de envolver o leitor. Há passagens belíssimas como esta, do capítulo 7, cujo primeiro parágrafo descreve:
 
Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.
No entanto há outras em que, apesar da forma divertida, dá um nó na sua cabeça, como a do capítulo em que se intercalam duas narrações ao mesmo tempo. À primeira vista achei que havia um defeito, um erro de revisão no livro, mas depois entendi a dinâmica. O que começava na primeira linha, tinha continuação na terceira e depois na quinta e assim sucessivamente. O texto da segunda linha, prosseguia na quarta, em seguida na sexta e assim por diante. E ainda o trecho do capítulo 69, em que a grafia se apresenta complexa, errada, exdrúxula:
 
Ingrata supreza foi ler no “Ortográfiko” a notisia de aver falesido em San Luis Potozi, no dia 1º de marso último, o tenente koronel (promovido a koronel para ser apozentado) Adolfo Abila Sanhes. Foi uma surpeza porkê não tivéramos notisia de ikê se axasse de kama. Além do mais, já avia tempo kê o tínhamos katalogado entre nossos amigos os suisidas i, numa okasião, “Renovigo” referiuse a sertos sintomas observados nele. Todavia, susede kê Abila Sanhes não eskolieu o revólver komo o eskritor antiklerikal Giyermo Delora, nem a korda komo o esperantista fransês Eugène Lanti.
Como jogo estético, sem dúvida, é bastante inovador, mas confesso que me impacientou um pouco, sem falar na história propriamente dita que não via a hora de terminar. Ela até que começou bem, eu estava gostando, saboreando cada palavra, como no início da trama:
 
Encontraria a Maga? Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia.
Ou ainda nesta:
 
Preferíamos o encontro casual na ponte, no terraço de um café num cineclube ou, talvez, curvados sobre um gato em qualquer pátio do bairro latino. Andávamos por Paris sem nos procurarmos, mas sabendo sempre que andávamos para nos encontrar.
O começo me seduziu, me “pegou”, a leitura foi fluindo, até que as confusões começaram. Ora a personagem era a Maga, ora aparecia uma Lúcia... até juntar A com B e entender que eram a mesma pessoa, custou. Da mesma forma, atinar que Horácio e Oliveira também eram um só e que Rocamadour não era outro senão o filho da Maga foi outra aventura.
 
A propósito de Horácio/Oliveira preciso dizer que é um dos personagens mais desprezíveis que conheci. “Pseudointelectual”, ele é um argentino, que se instala em Paris para estudar, isso aos 40 anos, mas o projeto não acontece, como tudo em sua vida, pois está sempre em busca de algo que ele mesmo não sabe o que seja. Junto com outros amigos funda o “Clube da Serpente”, para discutir arte, filosofia e política, e ouvir jazz, aliás, uma das paixões de Cortázar.
Maga, por outro lado, é uma uruguaia, que foi para Paris com o filho pequeno porque os pais queriam que ela abortasse. É uma mulher simples, distraída, de pouco conhecimento, mas que acaba se envolvendo com Horácio/Oliveira e se integra ao Clube da Serpente, embora, muitas vezes, se sinta à margem destes. 
 
O triângulo amoroso se forma com Ossip Gregorovius, um romeno que diz ter três mães diferentes. O destino deles é incerto, por isso é difícil saber o que acontece, principalmente com a Maga, apenas deduções. Já com relação a Horácio/Oliveira podemos ainda vislumbrar sua trajetória na segunda parte do livro, quando ele retorna à Argentina e reencontra seu amigo Traveler, casado com Talita. Confesso que não gostei muito dessa sequência e foi um parto terminá-la.
Por que não o abandonei? Porque tinha de lê-lo para o Clube de Leitura que frequento e, acima de tudo, era um desafio. Queria saber onde iria chegar, como iria terminar, se é que haveria um desfecho. Mas o livro não tem um fim. É uma história cíclica, que dá voltas e se repete sempre. Talvez eu não tenha compreendido bem a obra e seu alcance, suas múltiplas possibilidades, mas o fato é que elas não funcionaram muito bem pra mim. Afinal, nem cheguei a ter empatia pelo personagem principal, aliás não gostei de nenhum personagem... talvez um pouco da Maga, mas só um pouco. E isso é muito pouco.
 
Na definição de Cortázar, O jogo da amarelinha é “muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros”. É uma obra ambígua e complexa, que eu tive muita vontade de ler tempos atrás e que talvez ainda pensasse em ler algum dia... Acabei lendo. Posso dizer que é, sem dúvida, um dos romances mais originais que tive a oportunidade de ler, mas, admito, sem culpa nenhuma, que o livro não me trouxe prazer enquanto leitora. Já os contos de Cortázar, esses sim são maravilhosos, inspiradores e inesquecíveis. Vou me concentrar neles.