quarta-feira, 30 de maio de 2012

O horror de Kafka

Figura emblemática e perturbadora da literatura mundial, Franz Kafka é, sem dúvida, um dos maiores escritores de ficção da língua alemã no século XX. Suas principais obras, A metamorfose (1915), O processo (1925) e O castelo (1976) são exemplos clássicos de uma escrita marcada pelo absurdo de um mundo impessoal e angustiante. E os protagonistas destes livros refletem os medos e as preocupações do próprio Kafka diante de uma realidade opressora e alienante.

Li poucos livros de Kafka e já há um bom tempo, por isso confesso que estou a dever aos seus escritos. O castelo, por exemplo, embora me interessasse muito, cheguei a abandonar... talvez não fosse aquele o momento certo para lê-lo. Seja como for, preciso retomá-lo, uma vez que a sombra de Kafka vem rondando minhas leituras nos últimos meses.
Foi talvez por essa razão que aceitei ler, na última semana, um pequeno livro do escritor. A obra foi indicada por um amigo do trabalho que fez questão de me emprestar, reforçando a sugestão de lê-lo. O exemplar, em questão, trata-se de Franz Kafka – Um artista da fome seguido de Na colônia penal & outras histórias.
Organizado e traduzido por Guilherme da Silva Braga, o livro foi publicado em 2009 pela L&PM Pocket e reimpresso em 2011. Além do conto que lhe dá título, a obra traz ainda mais três contos – A primeira dor, Uma pequena mulher e Josefine, a cantora ou O povo dos ratos – e a novela Na colônia penal.
Os quatro contos foram escritos entre 1922 e 1924 e publicados em diversos periódicos da época. Com exceção de Uma pequena mulher, os demais textos refletem sobre o papel do artista, as reivindicações nem sempre coerentes que fazem, a visão que os não artistas têm deles e o isolamento num futuro iminente.
Dos contos, Um artista da fome é, talvez, o mais autobiográfico, publicado pouco antes de Kafka morrer, de tuberculose. Nele, o escritor trata de um artista de circo, um jejuador, capaz de ficar mais de um mês sem comer, cujo sonho é jejuar infinitamente. Com o passar do tempo essa atividade vai sendo relegada e a atração passa a não ser mais requisitada pelo público, de forma que o jejuador vai ficando isolado e esquecido em sua jaula, proporcionando um espetáculo que não interessa a mais ninguém.
No entanto, é a novela Na colônia penal, de 1914, que o impacto da escrita de Kafka se faz sentir com maior intensidade. Fluida, a narrativa é impactante na medida em que o leitor não consegue se desgrudar dela, sentindo o horror e o absurdo da história que tem um final aterrorizante.
Influenciada, segundo o escritor, jornalista e tradutor brasileiro Modesto Carone, por uma obra pornográfica sádico-anarquista de Octave Mirbeau, de 1899, intitulada Le Jardin dês Supplices (O jardim dos suplícios), que continha flagelos, sadismo e horrores, Na colônia penal, ao lado de Um artista da fome, estão para Kafka entre os cinco livros e um conto que considera tenham alguma valor entre aqueles que escreveu.
A novela narra a história de um explorador que é convidado a assistir a uma execução em uma colônia penal francesa. O condenado, um soldado acusado de insubordinação, não teve julgamento e nem direito a defesa; sua sentença simplesmente foi declarada pelo oficial encarregado de executá-la por meio de uma máquina especialmente criada para torturar até levar a morte o condenado.
Essa máquina de tortura trata-se de um mecanismo complexo que escreve, lentamente, sobre a pele do corpo do sentenciado, com umas agulhas feitas de vidro, a punição do crime. A tortura dura 12 horas, nas quais o oficial sente prazer em empregá-la, consciente da justiça que é feita.
A história é uma crítica ao sistema penal e a crueldade com que são executados os castigos corporais, utilizando-se para tal técnicas da Idade Média. Além de fazer alusão aos estados despóticos que minam a liberdade e o direito do indivíduo.
Trata-se de uma novela forte, um verdadeiro clássico dos horrores, mas mais do que isso, uma denúncia explícita. Este é Kafka.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O senhor das moscas

Livros sobre ilhas desertas costumam fascinar e suscitar muito a nossa imaginação. O que levaríamos e o que faríamos se para lá fôssemos costumam ser os questionamentos mais frequentes. A aventura parece ser divertida, mas pode também trazer perigos e um certo distanciamento da dita civilização, além de uma possível perda da inocência, como acontece em O senhor das moscas, primeiro romance do escritor inglês William Golding, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1983.

O livro foi publicado em 1954 e, embora conte com mais de 50 anos, continua fascinando e ensejando inúmeras interpretações em seus leitores. À primeira vista pode parecer uma história infanto-juvenil, por tratar de um grupo de crianças presas em uma ilha deserta, mas sua trama extrapola a simples aventura para se transformar em um clássico da literatura do pós-guerra.

A história começa quando um grupo de meninos ingleses de um colégio interno se encontram perdidos em uma ilha, depois da queda do avião que as transportava para longe da guerra. Os primeiros a aparecer são Ralf, um garoto esperto que possui um carisma fora do comum, e Porquinho, um menino gordo, asmático e míope, mas dotado de inteligência extraordinária. Juntos, eles encontram uma concha que será utilizada para reunir os outros meninos que estão na ilha e se tornará uma espécie de símbolo da civilização que pretendem implantar no local, sem adultos, sem as obrigações destes.

A eles juntam-se Jack, um garoto que sabe explorar sua força física e domina um grupo de meninos que formavam um coral antes da queda, e Simon, um menino místico, que tem visões, mas que ao meu ver tem coragem suficiente para desvendar o grande mistérios da ilha, representado pelo “bicho” que todos sentem, mas não veem. E é com a figura desse “bicho”, que Jack tenta impor sua força e seu domínio sobre os meninos, principalmente entre os pequenos, os que mais são suscetiveis ao medo do desconhecido.

A escrita de Golding é fluida e a leitura transcorre agradavelmente, de forma que o leitor é transportado para o interior daquela ilha até certo ponto paradisíaca, repleta de frutos e florestas, com infinidade de porcos que, aos poucos, vão sendo caçados, mortos e transformados em alimento pelos meninos comandados por Jack.

No início tudo é harmonia e os garotos se organizam sob o comando de Ralf, eleito democraticamente pelos meninos para ser o chefe, a despeito dos ciúmes e do antagonismo de Jack. Este, a princípio, aceita, mas aos poucos vai revelando sua natureza selvagem, rebelando-se e rompendo com a “sociedade”, formando seu próprio grupo guiado pela força.

O livro traz muitas simbologias, com Ralf representando a democracia disseminada pelo seu carisma. Jack, ao contrário, denota o facismo e o autoritarismo, uma vez que quer dominar todos na ilha; já Porquinho é o lado racional, a inteligência, ligada à ciência, muitas vezes impopular, mas sempre buscada no fim. Por isso mesmo, é o menino que sofre o bullying, antagonizado e discriminado pela maioria, principalmente por Jack.

O título do livro está relacionado com a natureza do mal. Ele é citado em uma passagem quando, depois de matarem uma porca, os meninos deixam sua cabeça em uma clareira para ser oferecida ao “bicho”, que pensam existir na ilha. Esta fica rodeada de moscas e é vislumbrada por Simon, que passa a conversar com ela, referindo-se a si mesma como “O senhor das moscas” (tradução literal do nome hebraico Ba´alzevuv, ou Beelzebub em grego, um sinônimo para “diabo”.

Uma das passagens mais incríveis e fortes do livro é a dança que acontece sempre depois da caça. Jack e seus “caçadores” pintam o rosto e o corpo e, depois de alimentados, fazem uma roda onde dançam encenando a caçada em si. É um ritual selvagem, tribal, onde se encaixa perfeitamente aquela expressão “pão e circo”, alimento e diversão. Deem ao povo isto e tudo estará bem.

É importante ressaltar que o acontece antes dos meninos caírem na ilha ou depois dela, pouco importa. A história se resume ao que se passa na ilha. Mas a tentativa destes, sobretudo de Ralf, é manter acesa uma fogueira, cuja fumaça se eleve aos céus para que possa ser vista por possíveis navios ou aviões que passem pelo local, de forma que possam ser salvos.

Já quase no final do livro não pude deixar de lembrar de outra obra, esta A revolução dos bichos, de George Orwell. Em dado momento, Ralf se vê praticamente sozinho nesta tentativa de manter a fogueira acesa e é obrigado a fugir da força do bando de Jack. A cena remeteu-me a Bola de Neve, personagem de A revolução dos bichos que, junto com outro, Napoleão, empreendeu a revolta dos animais contra os humanos, levando-os ao poder. Napoleão, no entanto, é seduzido pela força e escorraça Bola de Neve, que é obrigado a fugir. Vi a mesma cena acontecer em O senhor das moscas.

O livro teve duas adaptações para o cinema. Uma em preto e branco, lançada em 1963, bastante fiel ao romance. A outra, lançada em 1990, tem um visual mais atualizado, mas com partes divergentes do original. A conferir.

O senhor das moscas é um livro que sugere, mesmo, muitas interpretações. Vale a pena ser lido, pensado e discutido.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Guerra e Paz de Portinari

Tarde de domingo, 20 de maio – Último dia para ver a exposição Guerra e Paz, do artista brasileiro Cândido Portinari. Em frente ao Salão de Atos Tiradentes, no Memorial da América Latina, em São Paulo, uma fila imensa dava volta por toda a extensão da Praça Cívica.

Eu já tinha visto a exposição, mas acabei indo novamente para acompanhar minha irmã e meu sobrinho e, nem mesmo as duas longas em que fiquei na fila esmoreceu minha vontade de ver novamente os dois belíssimos painéis de Portinari.
Guerra e Paz foram os últimos e maiores murais criados pelo artista na década de 1950, especialmente para a sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York. Os painéis puderam ser expostos depois de minucioso trabalho de restauro que aconteceu entre fevereiro e maio de 2011.
Além dos belíssimos murais, foram expostos, também, estudos do pintor para a obra, vídeos, linha do tempo com imagens em movimento contando a trajetória do pintor, desde sua infância em Brodowski (SP), visitas guiadas e oficinas.
Mas o ápice da mostra, sem dúvida, eram os dois painéis que, além de impactarem pela dimensão (14x10m) e beleza nas cores e nos detalhes, contou também com um vídeo que ressaltou cada elemento contido nos painéis. As imagens eram mostradas tendo ao fundo dois extraordinários poemas: o primeiro, A mão, de Carlos Drummond de Andrade, escrito em 1962, logo após a morte de Portinari; o segundo Guerra e Paz, de Fernando Brant, compositor mineiro, sobre os painéis.
Vale a pena transcrevê-los:

A MÃO
(Carlos Drummond de Andrade)

"Entre o cafezal e o sonho
a mão está sempre compondo
O garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
E nada mais resiste à mão pintora.

A mão cresce e pinta o que não é para ser pintado mas sofrido.

A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-quer no baú dos vencidos.

A mão cresce mais e faz
do mundo como-se-repete o mundo que telequeremos.

A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.

Tudo tem explicação por que tudo tem (nova) cor.

Tudo existe por que foi pintado à feição de laranja mágica,
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento domicílio do homem.

Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide;
todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.

Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.

O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.

E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari."

 A GUERRA E A PAZ DE PORTINARI

(Fernando Brant)

"A guerra é uma cavalgada

cruzando o azul da paisagem
cortejo de fome e de morte
ferindo o coração dos homens

A mulher velando o filho morto
a mulher e a criança chorando
a mãe e a filha em desespero
de cabeças rolando na grama

A guerra são os quatro cavalos
regendo a sinfonia de dores
são os braços erguidos em prece
pedindo o final dos horrores

 A paz é um coro de meninos
é a voz eterna da infância
as mulheres dançando na roça
os meninos pulando carniça

É a noiva de branco sorrindo
na garupa de um cavalo branco
a mulher carrega um carneiro
crianças no espaço balançam

A paz está nos meninos
que brincam nos campos da infância
nos homens, nas mulheres cantando
a harmonia, a esperança." 

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Flip – 10 anos em grande estilo

A Festa Literária Internacional de Paraty – Flip será bastante especial este ano. O evento, que acontecerá de 4 a 8 de julho próximo, chega a sua 10ª edição e, para comemorar, tem um homenageado pra lá de bacana: o poeta, escritor e cronista mineiro Carlos Drummond de Andrade.

Como se não bastasse tudo isso, contará com a participação de 40 escritores vindos de 14 países, entre eles Jonathan Franzen, autor de As correções e Liberdade, entre outros; Jennifer Egan, que ganhou o prêmio Pulitzer pelo A visita cruel do tempo; e Le Clézio, prêmio Nobel de Literatura em 2008, autor de O Africano.
Rumo à minha quinta Flip, as expectativas são muitas e, embora o conjunto todo me agrade muito – os 10 anos, Drummond, autores de peso, show de abertura com Lenine, Flipinha, Flipzona e Casa da Cultura –, confesso que não há um destaque para mim como aconteceu nos anos anteriores, em que fiz questão de participar para ver Neil Gaiman (2008), Gay Talese (2009), Robert Crumb (2010) e Joe Sacco (2011).
É, pelo visto as minhas preferências estão mais na área de HQs, a conferir pelos nomes que citei, e é justamente neste segmento que senti falta de um nome de peso na edição de 2012. Se bem que haverá uma Oficina Literária voltada para o assunto, ministrada por Laerte e Angeli, mas ainda assim limitada a alguns participantes que tiveram a felicidade de serem selecionados.
Seja como for, estou animada para o evento, afinal, há muita atividade boa por lá, sem falar no clima alegre, amistoso e cultural da cidade e a perspectiva de cruzar, por suas ruas sinuosas, com os autores participantes. Destes, além dos citados acima, estou ansiosa para ver – e participar das mesas – do chileno Alejandro Zambra, autor do recém-lançado Bonsai; do espanhol Enrique Vila-Matas (Bartleby & Companhia); do inglês Ian McEwan (Reparação); e do brasileiro Rubens Figueiredo (Passageiro do fim do dia).
A conferência de abertura, que acontecerá no dia 4 de julho traz uma novidade. Ela será dividida em duas partes. A primeira, o escritor gaúcho Luís Fernando Veríssimo falará sobre os dez anos da Flip e as transformações ocorridas no Brasil no período. Em seguida, os poetas Antonio Cícero e Silviano Santiago fazem a primeira homenagem a Drummond.
Para coroar os dez anos da Flip, a organização, com co-curadoria de Flávio Moura, preparou uma série de produtos especiais, como o DVD Uma palavra depois da outra: a arte da escrita, criado a partir de falas dos autores presentes nos 10 anos do evento. Além deste, haverá também dois livros: o primeiro sobre as nove edições do evento, com reportagens afetivas de Zuenir Ventura, Angel Gurria Quinta, Humberto Werneck e Sérgio Augusto. E o segundo com textos inéditos (contos e ensaios) de escritores nacionais e estrangeiros que já estiveram em Paraty, compilados pela idealizadora e presidente da Flip, Liz Calder.
A programação completa da Flip foi divulgada em coletiva de imprensa e pode ser conferida no site da festa - http://www.flip.org.br/programas.php. Os ingressos começam a ser vendidos em 4 de junho pela internet, telefone e nos pontos de vendas oficiais. Para a Tenda do Telão custam R$ 10,00; para a Tenda dos Autores, R$ 40,00 e para o Show de Abertura, R$ 30,00.

Vale destacar que no press-kit entregue à imprensa na coletiva, junto à programação da festa, havia um desenho dos quadrinistas gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá feito especialmente em homenagem aos dez anos da Flip. Os gêmeos participaram de mesas na festa em 2009 e 2011. E eu estava lá.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O adeus a Carlos Fuentes

“Nada se inventa sem a tradição. Ninguém cria do nada.”

Carlos Fuentes, escritor mexicano (11 de novembro de 1928 - 15 de maio de 2012).

terça-feira, 8 de maio de 2012

A infância que se vai...

Quando li – e vi – no notíciário da internet sobre a morte de Maurice Sendak, autor e ilustrador de literatura infantil, aos 83 anos, não pude deixar de me entristecer. A morte de um autor – ainda mais do quilate de Sendak – é sempre sentida, mesmo quando lembramos que ele já tenha passado dos 80 anos.

Um dia antes de sua morte, por uma dessas coincidências e sincronicidades da vida, eu estava na Livraria da Vila, na Vila Madalena, participando do bate-papo e do lançamento do livro O filho de mil homens, do escritor português valter hugo mãe.

O encontro acontecia no setor dedicado à literatura infanto-juvenil. No local, foram dispostas cadeiras para cerca de 80 pessoas que conseguiram chegar uma hora antes do início do bate-papo. Em meio ao recinto lotado, rodeado de livros, a conversa corria solta e humorada, mas cheguei um pouco atrasada, por isso, tive de ficar em pé. Em dado momento, vislumbrei uma prateleira à minha frente e, nela, minha atenção parou no exemplar exposto de Onde vivem os monstros, principal obra de Maurice Sendak. Ela saltava aos olhos, ofuscando os demais livros ao seu redor.

Não pude deixar de lembrar desse fato quando da morte do escritor.  Acho que há qualquer coisa de simultâneo em tudo isso, eu até diria mágico.

Onde vivem os monstros causou certa estranehza para mim quando o li pela primeira vez. Não é à toa, o livro foi considerado polêmico na época do lançamento, em 1963, será por se tratar de monstros que habitam nossa imaginação e interior, por isso mesmo seja um clássico nos países de língua inglesa, com aproximdamente 19 milhões de cópias vendidas.


A história fala dos monstros da infância por meio de Max, um garoto muito travesso. Um dia, ao passar dos limites, sua mãe lhe dá uma bronca séria e o deixa de castigo no quarto. É quando a imaginação do menino é posta para funcionar e ele resolve fugir de casa, indo parar na imaginária ilha onde vivem os monstros. Ali ele é tido como uma espécie de rei e vai aprender as responsabilidades de sua nova condição, com um pequeno clarão do fim da infância que está por vir.

O livro ganhou uma adaptação cinematográfica em 2009, pelo diretor Spike Jonze. Bastante instigante.

Maurice Sendak publicou ainda mais de dez livros infantis escritos e ilustrados por ele. Destes, destaque para In the night kitchen, Outside over there (que formam uma trilogia com Onde vivem os monstros) e The sign on Rosie´s door.

Com a morte de Sendak, um pouco da nossa infância vai embora também. Ele fará falta.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

O trabalho e a poltrona

Recentemente, ao visitar o blog de uma amiga descobri uma publicação que, apesar de já existir há um bom tempo, ainda não conhecia. Trata-se de Granta, revista literária e editora no Reino Unido, que publica muitos dos melhores escritores do mundo, abordando temas fundamentais ao ser humano.

No Brasil, a revista é publicada pelo selo Alfaguarra, da editora Objetiva, e sua edição nº 8, em português, é toda dedicada ao tema Trabalho. Achei bastante oportuno lê-la esta semana, quando comemoramos do dia do “lavoro”.
São 15 textos, entre memória, ensaios ou ficção, que retratam cenários como o Rio de Janeiro, Londres, Pequim, Jafna, Dublin, entre outros, além de um ensaio fotográfico do diretor de cinema Walter Carvalho. Dos escritores, cinco são brasileiros, um argentino, sete originalmente publicados na Granta inglesa e dois traduzidos do número de estreia da versão italiana, também dedicado ao trabalho.
A edição tem início com um texto bem humorado, informativo e reflexivo do escritor Salman Rushdie sobre o significado da preguiça, um dos sete pecados capitais que, segundo ele, até hoje não foi abordada com muita consideração pela literatura. Em seu texto, Rushdie lembra de personagens famosos, rodeados pela sombra da preguiça, como Hamlet, o procrastinador; Bartleby, que prefere não fazer nada; e Oblómov, o inerte. De certa forma, temos um pouco deles dentro de nós.
Um dos textos que achei bem interessante foi o da escritora Doris Lessing, intitulado “A morte de uma poltrona”. Nele, a autora conta que uma senhora participou de um leilão onde pretendia arrematar uma poltrona e um sofá. Obtidos a um preço irrisório, os móveis foram levados para seu chalé e ficaram lá por um bom tempo, o único senão foi a poltrona, que era demasiado grande e pesada, mas ainda assim perfeita para o que a senhora pretendia, além do mais era uma antiguidade, com mais de 40 anos de fabricação.
Vendido o chalé, os móveis tiveram de ser transportados para outra residência, e depois outra, até que a poltrona tornou-se um estorvo. Calculando que seria demasiado difícil desfazer-se dela, ou melhor, de encontrar quem a retirasse da casa, devido ao seu tamanho e peso, resolveu trucidá-la e, depois, juntar os pedaços para jogá-los no lixo.
Nessa empreitada, a senhora descobriu, a cada golpe que dava na poltrona e no seu tecido, uma verdadeira obra de arte e acabamento, feita por mãos artesãs, como destaco no trecho abaixo:
Sob a seda rosa havia um forro de linho puro, de tom creme, que me fez pensar no linho diáfano que os egípcios da Antiguidade vestiam. Era rígido e não se esticava, nem mesmo nas curvas. Debaixo dele havia o calicô leve, e depois o enchimento que consistia em três camadas: a de cima era fina, como uma lanugem, a outra era mais áspera, e a última era um acolchoado de algodão. Tirei tudo isso do espaldar da poltrona e descobri a madeira cor de chá ralo. As tiras largas que seguravam o enchimento no lugar eram de fitas brancas e duras que se cruzavam como no entrelaçamento de uma cesta, as pontas presas à madeira com pregos minúsculos, em várias fileiras, formando o padrão que contornava o encosto da poltrona. Meu martelo de unha não conseguia nem chegar perto daqueles pregos. Cada uma das camadas do enchimento tinha sido pregada a essa rede com enormes pontos corridos que também formava um padrão de fileiras em V. Imaginei o artesão que tinha feito a poltrona se ajoelhando ao lado dela, em um banquinho, com sua agulha curva de aço, fazendo aquele padrão em V que ninguém jamais veria, dando marteladinhas naqueles preguinhos perfeitos... mas não era eu quem as via e pensava nele? Ele já estava morto havia muito tempo, mas suas fileiras de pregos ainda reluziam feito prata, e os fios da costura cintilavam à luz de minhas janelas grandes.
Lembrei-me de imediato de uma reportagem que fiz no Lar e Escola São Francisco, Centro de Reabilitação que mantém convênio técnico-científico com a Universidade Federal de São Paulo. O objetivo é reabilitar física e psicologicamente pacientes com incapacidades físicas.
No local, há uma oficina ortopédica, onde são confeccionadas órteses (aparelhos que auxiliam na função do membro, como um colete para o pescoço, região lombar, dedo, punho, braço todo, tornozelo, pé, perna) e próteses e adaptações de cadeiras de rodas. Ali, os funcionários são treinados e capacitados para exercer a função de órtese e prótese, um ofício que era passado de pai para filho, que começavam como aprendizes. Hoje em dia, com os avanços da tecnologia, essas profissões estão cada vez mais escassas.
Embora sejam trabalhos distintos, o do artesão lembrado no texto e o ofício de órtese e prótese, não pude deixar de fazer um relação, porque, a bem da verdade, são trabalhos que exigem perícia, técnica, atenção, dedicação. E quase em extinção.
O bom de uma história, de um texto lido, é a analogia que fazemos com nossas próprias experiências. Na narrativa sobre o fim da poltrona, lembrei também de que, quando mudei de casa no final do ano passado, precisei, igualmente, me desfazer de uma poltrona-cama enorme e espaçosa que havia em meu quarto, embora ainda estivesse em bom estado de conservação. Só que, além de grande, era extremamente pesada e tive muita dificuldade em me desfazer dela, porque para tirá-la de casa era necessário descê-la por uma escada e nem uma entidade filantrópica, para quem liguei, quis levá-la. Por fim, um carroceiro se dispôs a fazê-lo e levou a poltrona que, tristemente, vi no final do dia ser queimada na praça que fica em frente à casa onde morava. Nem o carroceiro a quis.
Será que se eu tivesse feito como a senhora do texto de Doris Lessing, destruído eu mesma a poltrona, também não teria a bela surpresa e visto a beleza do trabalho do artesão sobre ela? Quem sabe?