quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A cidade de Will Eisner

(Sobre a cidade)

“Estamos acostumados a vê-la dos arranha-céus, geralmente com uma sinfonia triste tocando de fundo, enquanto a câmera faz uma panorâmica da cidade e você vê o topo dos prédios. Mas ninguém vê a cidade da mesma forma que eu – da forma que todos que vivem nela [veem] – as filigranas, as grades, as escadas de incêndio. É isso que a gente da cidade que vive na cidade vê todos os dias. É isso que é a cidade.”
(In Will Eisner – um sonhador nos quadrinhos, de Michael Schumacher).

 E ele retratou a cidade como ninguém.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Da Guiné-Bissau, Abdulai Sila

Na década de 1970, o educador Paulo Freire assessorou diversos países africanos, recém-libertados da dominação europeia, na implantação do seu modelo educacional. Dentre estes, Guiné-Bissau, país da costa ocidental da África que foi a primeira colônia portuguesa no continente a ter a independência reconhecida por Portugal.


Na época, Freire travou conhecimento com estudantes e pessoas interessadas na educação, como Abdulai Sila, hoje um dos mais destacados escritores guineenses. E foi para falar dessa experiência e, sobretudo, da sua trajetória, que Abdulai esteve no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP, nesta semana, ao lado de Susana Ventura.

Não conhecia Abdulai, mas meu interesse por escritores de língua portuguesa aguçou minha curiosidade e, confesso, fiquei encantada com o autor, que além da literatura atua no desenvolvimento e na difusão das Tecnologias da Informação e Comunicação na Guiné-Bissau, uma vez que é co-gestor de uma empresa de informática para tornar a tecnologia mais acessível no país. Ele é, ainda, diretor da Ku Si Mon Editora, cujo trabalho tem buscado resgatar as histórias de tradição oral.

Abdulai contou que, quando criança, antes da independência do país, o acesso à educação era extremamente difícil, e só conseguiu ser alfabetizado pela persistência do seu pai e o ingresso em uma escola de padres italianos com a condição de ter ensino religioso católico e assistir às missas (a família dele era muçulmana). Por outro lado, teve seu nome preservado, ao passo que na escola oficial a prática comum era mudarem o nome dos guineenses para um utilizado em Portugal.

Acostumado a falar outras línguas (o pai e a mãe falavam línguas africanas diferentes, além do crioulo), aprendeu o português, mas falado apenas na escola. Mais tarde aprenderia também o alemão, quando foi estudar Engenharia na Alemanha. No entanto, logo cedo demonstrou interesse pela escrita, quando na adolescência, com a morte de um amigo, sentiu-se só. Para tentar conversar com ele, Abdulai passou a escrever todas as noites em um diário, contando os acontecimentos do dia ao “amigo”.

Depois da independência, em 1974, conheceu Paulo Freire nas brigadas da alfabetização, levando por lema uma frase do grande educador: “O mundo não é, está a ser feito”. A ideia era, sim, fazer um novo mundo, para que a população tivesse acesso à educação.

E foi uma imagem que suscitou nele a vontade de ser escritor: a da tragédia do levante de Soweto, um dos mais sangrentos episódios de rebelião negra desencadeado pela polícia na passeata de 16 de junho de 1976, durante o protesto de estudantes contra a inferioridade das “escolas negras” na África do Sul. A partir da imagem, Abdulai escreveu um editorial para o jornal mural da escola e foi bastante elogiado pela professora.

Da realidade dura sentiu vontade de fantasiar, passando assim à ficção. Ávido por leituras, leu “A morte de Quincas Berro D´Água”, de Jorge Amado e autores africanos de língua portuguesa, amadurecendo assim sua escrita.

Seu livro Eterna Paixão (1994) é considerado o primeiro romance guineense. Escreveu ainda mais dois romances, A Última Tragédia (1995), publicado no Brasil pela Pallas Editora em 2006, e Mistida (1997).


Em A Última Tragédia, Abdulai narra a saga da jovem Ndani, suposta hospedeira de azar, no período anterior à independência da Guiné, fazendo assim um retrato do cotidiano da capital e do interior de seu país. Da mescla de ficção e realidade, destaque para o personagem, uma heroína. A conferir.