Na década de 1970, o educador Paulo Freire assessorou diversos
países africanos, recém-libertados da dominação europeia, na implantação do seu
modelo educacional. Dentre estes, Guiné-Bissau, país da costa ocidental da África que foi a
primeira colônia portuguesa no continente a ter a independência reconhecida por
Portugal.
Na época, Freire travou conhecimento com estudantes e pessoas
interessadas na educação, como Abdulai Sila, hoje um dos mais destacados
escritores guineenses. E foi para falar dessa experiência e, sobretudo, da sua
trajetória, que Abdulai esteve no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP,
nesta semana, ao lado de Susana Ventura.
Não conhecia Abdulai, mas meu interesse por escritores de
língua portuguesa aguçou minha curiosidade e, confesso, fiquei encantada com o
autor, que além da literatura atua no desenvolvimento e na difusão das
Tecnologias da Informação e Comunicação na Guiné-Bissau, uma vez que é
co-gestor de uma empresa de informática para tornar a tecnologia mais acessível
no país. Ele é, ainda, diretor da Ku Si Mon Editora, cujo trabalho tem buscado
resgatar as histórias de tradição oral.
Abdulai contou que, quando criança, antes da independência do
país, o acesso à educação era extremamente difícil, e só conseguiu ser
alfabetizado pela persistência do seu pai e o ingresso em uma escola de padres
italianos com a condição de ter ensino religioso católico e assistir às missas
(a família dele era muçulmana). Por outro lado, teve seu nome preservado, ao passo
que na escola oficial a prática comum era mudarem o nome dos guineenses para um
utilizado em Portugal.
Acostumado a falar outras línguas (o pai e a mãe falavam
línguas africanas diferentes, além do crioulo), aprendeu o português, mas falado
apenas na escola. Mais tarde aprenderia também o alemão, quando foi estudar
Engenharia na Alemanha. No entanto, logo cedo demonstrou interesse pela
escrita, quando na adolescência, com a morte de um amigo, sentiu-se só. Para
tentar conversar com ele, Abdulai passou a escrever todas as noites em um
diário, contando os acontecimentos do dia ao “amigo”.
Depois da independência, em 1974, conheceu Paulo Freire nas
brigadas da alfabetização, levando por lema uma frase do grande educador: “O
mundo não é, está a ser feito”. A ideia era, sim, fazer um novo mundo, para que
a população tivesse acesso à educação.
E foi uma imagem que suscitou nele a vontade de ser escritor:
a da tragédia do levante de Soweto, um dos mais sangrentos episódios de
rebelião negra desencadeado pela polícia na passeata de 16 de junho de 1976, durante
o protesto de estudantes contra a inferioridade das “escolas negras” na África
do Sul. A partir da imagem, Abdulai escreveu um editorial para o jornal mural
da escola e foi bastante elogiado pela professora.
Da realidade dura sentiu vontade de fantasiar, passando assim
à ficção. Ávido por leituras, leu “A morte de Quincas Berro D´Água”, de Jorge
Amado e autores africanos de língua portuguesa, amadurecendo assim sua escrita.
Seu livro Eterna Paixão
(1994) é considerado o primeiro romance guineense. Escreveu ainda mais dois
romances, A Última Tragédia (1995),
publicado no Brasil pela Pallas Editora em 2006, e Mistida (1997).
Em A Última Tragédia,
Abdulai narra a saga da jovem Ndani, suposta hospedeira de azar, no período
anterior à independência da Guiné, fazendo assim um retrato do cotidiano da
capital e do interior de seu país. Da mescla de ficção e realidade, destaque
para o personagem, uma heroína. A conferir.