segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Dia D #Drummond

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

A estrofe acima é a primeira do "Poema de sete faces", o primeiro do livro Alguma Poesia de Carlos Drummond de Andrade, considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa e da literatura latino-americana, e que também foi contista e cronista.

De origem francesa, a palavra gauche quer dizer "esquerdo". Figurativamente pode significar "acanhado", "inepto", "à margem da realidade", qualificações que o poeta atribuía a si mesmo, mas que com a poesia buscava superar o problema.

Na verdade, a humildade sempre foi sua marca. Nascido em Itabira, Minas Gerais, se vivo, o poeta completaria hoje 109 anos, e, por todas as redes sociais sua lembrança vem sendo evocada pelo Dia D, Dia de Drummond.

Estou em falta com o mestre da poesia por ter lido pouco de sua obra, mas lembro de uma que marcou minha adolescência e abriu meus olhos para a poesia. Suas rimas, cadência e leveza soam aos meus ouvidos como música e não poderia ser de outra maneira. Afinal, José é mais que palavras, é sentimento, é melodia, é poesia pura.

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Óculos, tablet e livros impressos

Domingo passado quebrei meus óculos quando vestia uma blusa. E para quem tem seis graus de miopia, além de presbiopia, popularmente conhecida como vista cansada, isso, sem dúvida, é um caos. Mas tenho um óculos antigo que, embora fraco, está me quebrando o galho até o novo ficar pronto.

Ainda assim, é difícil de ler e, por mais que eu me esforce, esta semana não consegui avançar muito nas minhas leituras e precisei dar um tempo. Foi assim que hoje, no trajeto de casa para o trabalho, dentro do metrô, minha atenção foi chamada por um rapaz que tinhas nas mãos... um tablet!

Até ai nada de novo, mesmo porque, um colega de trabalho havia me dito que nos trens da CPTM isso é bastante comum. Mas a verdade é que eu ainda não tinha visto alguém lendo com essa tecnologia no transporte metropolitano, pelo menos no trajeto e nos horários que faço.

O mais interessante de tudo é que, ao redor dele, que não estava muito distante de mim, havia pelo menos umas cinco pessoas lendo também, mas o livro impresso. E, depois de uma rápida olhada ao longo do vagão, notei que havia outras pessoas lendo revistas, jornais, apostilas..., enfim, variadas publicações, mas todas em papel.

Lembrei-me, então, que no domingo passado dei uma rápida passada pela Livraria Cultura, na Avenida Paulista. E, ali, além de toda gama de livros que cobrem o amplo espaço do estabelecimento, não pude deixar de perceber a quantidade de pessoas que havia no local, comprando, lendo, olhando, procurando e manuseando publicações impressas.

Não dá pra negar que a tecnologia está aí, que o livro e a leitura digital vem se tornando cada vez mais uma realidade no cotidiano, sobretudo para as novas gerações, mas que o papel impresso ainda tem seu encanto – e público –, ah, isso ninguém pode negar. Que bom!

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Literatura odontológica

Há pelo menos seis anos estou envolvida com publicações na área da Odontologia. Como jornalista, tenho de estar apta a escrever sobre todo e qualquer tema, mas confesso que falar sobre implantes, braquetes, peri-implantite e afins não é muito prazeroso assim. No entanto, são ossos do ofício.

Neste segundo semestre, no entanto, a agência para qual trabalho está se dedicando, além da publicação de revistas técnicas de Implantodontia, Ortodontia e Periodontia, ao ramo literário, com a publicação de quatro livros científicos, também na área da Odontologia.

E como hoje é o Dia do Dentista, achei oportuno falar dos livros que, embora sejam específicos e técnicos, ganharam edição caprichada e sofisticada nestes tempos de livro virtual. Entre eles, o primeiro livro da Série como eu trato – Contemporânea DentalNews, desenvolvido pelo Instituto Bibancos de Odontologia, e Visagismo – a arte de personalizar o desenho do sorriso, de Bráulio Paolucci e colaboradores.

Contemporânea DentalNews

Na década de 1970, Jean Piaget, um dos mais importantes pesquisadores de educação e pedagogia do mundo, propôs o conceito de multidisciplinaridade, em que um conjunto de disciplinas podem ser trabalhadas simultaneamente. Mais de 30 anos depois, este conceito encontrou na saúde um dos principais respaldos, sendo utilizado hoje de forma cada vez mais abrangente para garantir uma melhor qualidade de vida às pessoas.

E é exatamente este o cerne da Contemporânea DentalNews – Série como eu trato, publicação ousada e inovadora da VM Cultural Editora, que traz ao leitor o resgate da visão holística sobre a saúde do indivíduo. Trata-se de uma obra transdisciplinar, que oferece aos profissionais da saúde – em especial os da área odontológica – a possibilidade de valorizar múltiplos aspectos e a oportunidade de contribuir para a saúde plena e harmônica das pessoas.

O primeiro volume da série centra-se no “Atendimento odontológico transdisciplinar com execução otimizada: relato de caso clínico planejado e fundamentado nas necessidades e nos anseios do paciente”. E apresenta um caso clínico, com uma paciente de 35 anos, submetida ao trabalho de 15 profissionais, encabeçado pelo cirurgião-dentista Fábio Bibancos, presidente do Instituto.

Esses profissionais, das áreas de Estomatologia, Radiologia, Ortodontia, Endodontia, Periodontia, Implantodontia, Prótese, Cirurgia e Fisioterapia, fizeram diagnósticos detalhados, amplos planejamentos e uso das mais avançadas técnicas contemporâneas para a recuperação da saúde bucal da paciente. Mais do que a interação conjunta e simultânea do trabalho desses profissionais de diferentes especialidades, a obra é o resultado de uma visão holística em que o paciente é visto como um todo.

Visagismo aplicado à Odontologia

Atualmente, estética e beleza constituem-se em requisitos essenciais na vida das pessoas, e um dos fatores que contribuem para isso são os dentes. Afinal, além de causar boa impressão, ter um sorriso bonito eleva a autoestima e proporciona uma existência mais saudável ao ser humano.

E para obter melhor resultado estético, a Odontologia Estética, especialidade responsável por restabelecer a beleza do sorriso, vem fazendo uso de um conceito bastante inovador. Trata-se do Visagismo, a arte de criar uma imagem pessoal, baseada no princípio de que o rosto deve expressar a personalidade e o comportamento de cada indivíduo, com harmonia e estética, revelando as suas qualidades.

Dentro desse conceito, o aspecto e a forma dos dentes também refletem essas características. Estudos realizados sobre Visagismo indicam que existe uma relação entre os formatos dos dentes e o formato do rosto e que os mesmos também correspondem à maneira com que a pessoa se expressa.

No Brasil, o conceito vem sendo trabalhado por Bráulio Paloucci, que pode agora ser conferido no livro Visagismo – a arte de personalizar o desenho do sorriso. O Visagismo é um conceito, uma arte que conta com a associação de conhecimentos de várias disciplinas, como Antropologia, Psicologia, Sociologia e linguagem visual. O Visagismo permite a análise do temperamento do cliente a partir do formato de seu rosto e suas feições, evitando, assim, criar sorrisos impessoais e artificiais.

Ao falar desses dois títulos, que são os mais interessantes dos quatro publicados, deixo aqui registrado um pouco do trabalho que faço diariamente, mas que agora, por envolver livros, tem me dado um fôlego a mais para falar de um assunto tão específico e técnico.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Poeta, poetinha vagabundo

A frase acima, contida na letra da música Samba pra Vinícius, composta por Toquinho, dá uma ideia de quem foi Marcus Vinicius da Cruz e Mello Moraes, ou simplesmente Vinicius de Moraes: uma figura andarilha e volúvel, mas sem dúvida um grande poeta e compositor, que também se aventurou pela diplomacia, dramaturgia e jornalismo.

Se vivo, o poeta estaria completando hoje 98 anos, mas boêmio inveterado, fumante e fã do uísque, partiu aos 67 anos, deixando uma grande obra na literatura, no teatro, no cinema e na música. Apesar desse legado, Eucanaã Ferraz, poeta e professor de literatura, afirma, no livro Vinícius de Moraes, da coleção “Folha Explica”, que “fala-se muito do poeta, mas lê-se insuficientemente sua poesia”. A figura do artista, teria se sobreposto à própria obra.

Pode ser, mas a verdade é que Vinícius de Moraes é um dos meus poetas preferidos. Seus sonetos e poemas, suas letras e composições acompanharam minha adolescência e início da vida adulta muito de perto e ainda estão muito presentes no meu dia a dia. Em 1980, ano da sua morte, uma amiga de faculdade presenteou-me com Para viver um grande amor, obra publicada em 1962 pela Editora do Autor. A edição que ganhei, entretanto, é de 1979, publicada pela José Olympio, e está bem capenga, com as marcas do tempo, das mudanças e das minhas leituras.

É o primeiro livro de prosa do autor, um misto de poemas e crônicas, estas publicadas em jornais e revistas ao longo de 20 anos. Os poemas também foram escritos nesse período e servem para amenizar um pouco a prosa: “dar-lhe um balanço novo”, como o próprio autor assinala no início do livro, em sua Advertência. Juntos, dão ao livro a tônica deste: o grande amor.

Escritas em linguagem despojada e acessível, que retratam o cotidiano, as crônicas me bateram mais forte do que a poesia, se bem que esta também é belíssima. As crônicas, contudo, falaram mais fundo, deixando marcas profundas em meu ser. Entre as crônicas escritas, destaque para a que dá título ao livro, Para viver um grande amor, texto que não se pretende ser uma receita, mas sim a visão do poeta do que se faz para viver um grande amor. Eis um trecho:

Para viver um grande amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existre amor sem fieldade – para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

...

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista – muito mais que na modista! – para aprazer ao grande amnor. Pois do que o amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

...

É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mais também com a mente, pois qualquer “baixo” seu, a amada sente – e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia – para viver um grande amor.

E por aí vai. Mas é interessante notar que, apesar de todo o romantismo e lirismo, Vinícius de Moraes não se manteve fiel a uma mulher só. Ele se casou nove vezes, mas garante que amou a todas, como se fosse a única, da mesma maneira que propagou na canção Eu sei que vou te amar, em parceria com Tom Jobim, cujos dois primeiros versos diz:

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar

Mas também justificando-se, como no final do Soneto de Fidelidade:

Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

É, este é Vinícius de Moraes: poeta e prosador; apaixonado e volúvel; contraditório e único. Leia mais Vinícius.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Contos de fadas e o objeto livro

Na minha infância não havia a fartura que existe hoje em oferta de livros infanto-juvenis. Então, é natural – só pra me justificar – que eu me volte, de tempos em tempos, para essa leitura, ainda mais nesta semana, a Semana da Criança. Assim, para fechar esse ciclo, quero destacar mais dois livros voltados ao público infantil que li recentemente, sendo um deles presente – que eu mesma me dei – no Dia das Crianças.

Histórias de contos de fadas me fascinam, elas me acompanham desde que eu era criança, mas sempre pautadas na versão Disney, da qual tinha uma bela coleção de livrinhos e discos. Por isso, quando vejo hoje versões originais e criativas das histórias, fico ávida para ler. Foi assim que cheguei a Little Lit, projeto de Art Spiegelman, ilustrador, cartunista e autor de histórias em quadrinhos americano, e de sua esposa Françoise Mouly, artista francesa e desenhista de histórias em quadrinhos.

O livro reuniu dezessete artistas de diferentes estilos para adaptar contos de fadas tradicionais em quadrinhos, cada um com sua linguagem gráfica própria em cores, letras, formato dos balões, textos e figuras. O resultado é uma obra rica e prazerosa de ler, remetendo-nos às histórias antigas e trazendo boas e agradáveis surpresas na adaptação.

Dentre as histórias estão “João e o pé de feijão”, “A bela adormecida”, “A filha do padeiro” e “O cavalo faminto”, entre outras. Destas, destaque para “O homem biscoito”, que me lembrou muito o personagem do filme Sherek, acho até mesmo que deve ter sido inspirado no clássico, e também para “O pescador e a princesa do mar”. Este último me fez voltar à minha infância.

Ao ler a história de Urashima Taro, o pescador japonês que salvou uma tartaruga maltratada por moleques, foi levado por esta ao reino das águas, onde se apaixonou pela princesa do mar e lá ficou por três anos, lembrei de um antigo comercial da Varig, do início da década de 1970 (é faz tempo!) que fazia alusão a essa história. E só agora é que percebi isso, já que na época não conhecia o conto japonês.

No comercial a história terminava um pouco diferente, claro! Afinal, era uma campanha empreendida pela companhia aérea para promover os primeiros voos diretos entre o Rio de Janeiro e Tóquio, mas a essência da história era a mesma. Gostei muito.



Little Lit inclui, ainda, um divertido jogo de tabuleiro com peças descartáveis: “A estrada maluca dos contos de fadas”, que dá vontade de espalhar pelo chão da sala e brincar como nos tempos de criança. Pena que o livro é da biblioteca e eu não pude fazer isso.

O outro livro, e que adquiri no Dia da Criança, trata-se de É um livro, de Lane Smith, escritor americano e ilustrador de livros infantis. O interessante dessa obra, que traz dois personagens principais – um burro e um macaco –, além do livro, é claro, é fazer um paralelo entre as novas tecnologias e o livro impresso.

O burro, que é adepto do computador e de todas as facilidades inerentes a ele, como internet, twitter, redes sociais, etc., indaga ao macaco sobre o objeto que ele está olhando com atenção, ou seja, o livro. E vai questionando como faz para usar, quais os recursos que têm, como é manipulado, para que serve, enfim... até sucumbir a ele.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Dia de ler

"Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por ideias." - Mário Vargas Llosa. 
Para não esquecer do 12 de outubro - Dia Nacional da Leitura.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Flores para vencer canhões

Quando eu era criança costumava passar as férias em Piracicaba, cidade do interior de São Paulo, onde meu tio morava. Lá me divertia muito e fiz amigos queridos, companheiros de brincadeiras e farras próprias da idade.

Mas como tudo na vida passa, a gente cresce e pouco a pouco vai se afastando das pessoas que antes eram frequentes na nossa vida. Assim foi com os amigos de Piracicaba até que, há duas ou três semanas, reencontrei um deles no Orkut. Foi muito bom, conversamos, trocamos telefones e agora nos falamos quase toda a semana, combinando ainda de nos visitarmos brevemente.

Ao reencontrar meu amigo muitas lembranças boas vieram à minha cabeça. Das férias maravilhosas que passávamos em sua casa, das farras, algazarras e até mesmo de um livro infantil que li, numa dessas visitas de lazer: O menino do dedo verde, do escritor francês Maurice Druon.

Não sei nem como, nem por que. Só sei que o livro estava lá, na sala, em cima de algum móvel e, meio que por encanto, chamou minha atenção e comecei a ler. Uma história simples e poética, mas com uma mensagem bela e verdadeira sobre questões humanas e ambientais. Jamais me esqueci.

À semelhança de O pequeno príncipe, a obra clássica do igualmente escritor francês Antoine de Saint-Exupèry, O menino do dedo verde é uma fábula que fascina e enternece, uma história que, escrita para crianças, fala também aos corações adultos. Não se trata de uma cópia, mas um livro que busca resgatar o que de melhor há no ser humano, a exemplo do principezinho.

Uma curiosidade: tanto O menino do dedo verde quanto O pequeno príncipe foram traduzidos para o português pelo monge beneditino e padre católico Dom Marcos Barbosa, que também era escritor, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras.

A história de Maurice Druon trata de Tistu, um menino feliz que nasceu de uma família rica e bondosa, que mora numa cidadezinha chamada Mirapólvora. Seu pai era dono da maior fábrica de canhões do mundo e sonhava com o dia em que seu filho viesse a lhe suceder no comando da empresa, assim como ele sucedera ao pai.

Quando completou oito anos, Tistu foi levado à escola, mas não conseguiu se adaptar a ela, pois acabava dormindo durante as aulas. Assim, seus pais decidem que ele irá aprender de uma maneira diferente, por meio de experiências e observações práticas da vida. E ja na primeira aula, com o jardineiro Bigode, Tistu descobre ter um grande dom: o polegar verde, ou seja, tudo o que ele toca transforma-se em flores e plantas de diversas espécies. E que até mesmo pode criá-las.

E cabe Bigode explicar a Tistu a importância dessa sua natureza:

– Ah é uma qualidade maravilhosa – respondeu o jardineiro. – Um verdadeiro dom do céu! Você sabe: há sementes por toda parte. Não só no chão, mas nos telhados das casas, no parapeito das janelas, nas calçadas das ruas, nas cercas e nos muros. Milhares e milhares de sementes que não servem para nada. Estão ali esperando que um vento as carregue para um jardim ou para um campo. Muitas vezes elas morrem entre duas pedras, sem ter podido transformar-se em flor. Mas, se um polegar verde encosta numa, esteja onde estiver, a flor brota no mesmo instante. Aliás, a prova está aí, diante de você. Seu polegar encontrou na terra sementes de begônia, e olhe o resultado!...

Depois do jardineiro Tistu vai ter lições de cidadania com o responsável pela ordem na fábrica de seu pai, o sr. Trovões. Começa então a conhecer outras realidades, como a cadeia e o horror que ela encerra e o bairro pobre, repleto de favelas, lama e sujeira. Decide então colocar mãos à obra, ou melhor, o polegar verde em ação e transforma aqueles lugares. E ainda o hospital que, embora limpo e asseado, carregava um ar de tristeza em que pacientes não sentem ânimo para se curarem.

A história vai avançando até a iminência de uma guerra entre dois países distantes de Mirapólvora que, a essa altura, com todas as transformações paisagísticas empreendidas por Tistu, passa a se chamar Miraflores. É quando o menino descobre, de fato, o trabalho do pai como fabricante de canhões de guerra, e aponta para esse lado o seu dedo. Isso me faz lembra da música de Geraldo Vandré, Pra não dizer que não falei das flores e o trecho que diz:

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão

Com a proximidade do Dia das Crianças, fica aqui a dica de uma leitura rica em imaginação, carregada de poesia que enternece o coração, com humor na medida que atenua as mazelas da vida e com bela mensagem que engrandece a alma.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Eu amo... livros, bibliotecas, escritores...

Desde que foi inaugurada a Biblioteca São Paulo, em fevereiro de 2010, venho ensaiando para ir ao local e me aventurar pelos espaços e prateleiras do lugar. Na verdade, em agosto do ano passado cheguei a ir à biblioteca, mas depois daquela vez não fui mais. Embora o acesso a ela seja fácil (é só ir de metrô), não moro tão perto, fica do outro lado da cidade e, assim, acabei deixando para depois, frequentando apenas as bibliotecas perto de casa e do trabalho, ou, quando muito, no trajeto de um para outro.

Hoje, porém, em busca de um livro que não encontrei nas bibliotecas que frequento, resolvi ir até o Carandiru para buscá-lo na Biblioteca São Paulo. E o que encontrei lá foi muito mais do que a obra que queria: um belo e bem abastecido edifício com títulos de perder a cabeça.

Entre estes, na seção infantil (é, eu também tenho os meus momentos de criança) encontrei uma coleção da Editora Callis que já se destaca pelo nome: Eu amo... São cinco títulos voltados para o público mirim, cada um enfocando um segmento: Livros, Escritores, Ilustradores, Bibliotecas e Editoras.

São pequenos livros de autoria da psicóloga Iris Borges que, com uma linguagem simples e lúdica, traz divertidas histórias sobre o mundo da leitura. Alguns livrinhos apresentam ilustrações e desenhos, outros destacam obras de artistas como Di Cavalcanti, Renoir, Botticelli, Picasso, Caravaggio, Almeida Jr e Botero, entre outros.

Os livros estavam tão bem dispostos na prateleira que não resisti. Lancei mãos deles e, sentada confortavelmente em um espaço no local, equipado com pufes aconchegantes, me perdi no encanto da leitura saboreando trechos como estes:

Um livro é feito de palavras. Às vezes, de desenhos ou pinturas. E, geralmente, é de papel.

– Ler e escrever me ajudam a entender melhor o que eu sinto e a dizer, com mais clareza, o que penso. E isso me faz feliz.

Para mim, um livro é um conjunto de palavras e, às vezes, de imagens, tecidas por um fio invisível. As palavras ficam rodeadas de ilustrações que vão reinventando o livro.

Mas dentre os títulos da coleção, o que mais me “pegou” foi o Eu amo bibliotecas. Claro, não podia ser diferente, apaixonada que sou por esses espaços. No texto, destaque para estas pequenas jóias:

Se ao lado da biblioteca houver um jardim, nada faltará. (Cícero)

Quando vou à biblioteca, adoro me atirar nas almofadas e escolher o livro que vai ficar ali comigo.

Se eu ficar triste, sei que a biblioteca é um lugar garantido para encontrar minha alegria.

Todas as coisas do mundo conduzem a um encontro ou a um livro. (Jorge Luís Borges).

Com essas leituras, o início da manhã foi bem prazeroso para mim. E sai da biblioteca com a alma e o coração leves, e, claro, carregada de livros emprestados (e eu ia aguentar?). Agora, se vou dar conta de ler todos eu não sei, só sei que é bom, bom demais estar na companhia dos livros.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Baleia e os animais na literatura

Homens e animais convivem juntos desde os primórdios da criação. Uma convivência nem sempre pacífica, respeitosa e justa, com o predomínio do primeiro sobre o segundo, mas que, felizmente, vem sendo questionada nas últimas décadas. Afinal, os animais fazem parte da natureza, são nossos aliados e parceiros e, suas existências trazem inúmeros benefícios ao ambiente e às nossas vidas.

Na literatura, esses companheiros tem presença forte e decidida, ora como protagonistas, ora como personagens secundários, povoando nosso imaginário de figuras e imagens inesquecíveis. Dentre estes, o dócil e valente elefante Salomão (Solimon) de A Viagem do Elefante, de José Saramago ou o bonito e discreto cão – e herdeiro da fortuna do dono – Quincas Borba, do livro de mesmo nome do escritor Machado de Assis.

Ou ainda aqueles com características antropomórficas, como os animais da fazenda de A Revolução dos Bichos, de George Orwell, criados pelo autor como uma crítica ao regime soviético. Ou ainda os personagens da graphic novel de Art Spiegelman, Maus, que conta a história dos seus pais, que eram judeus, no Holocausto. Os humanos são representados por animais como ratos, porcos, coelhos, gatos, sapos, cachorros, renas, traças e peixes.

Mas na literatura de ficção, dentre todos os personagens dos livros que li, nenhum chamou tanto a minha atenção - e emocionou – quanto a cachorra Baleia, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Narrado em terceira pessoa, o romance é o último do autor, e conta a história de uma família de retirantes nordestinos que foge da seca: Fabiano, sua mulher sinhá Vitória, o filho mais velho, o filho mais novo, a cachorra Baleia e o papagaio, morto já no início da narrativa.

Baleia (na ilustração ao lado de Aldemir Martins) era um animal pequeno e sensível, mas forte, esperto e corajoso, que ajudava Fabiano a juntar o pouco gado que a família tinha. Nadava muito bem, acompanhando sempre os meninos em suas brincadeiras em lagoas, parecendo “uma pequena baleia-jubarte em época de acasalamento nas águas mornas de abrolhos”.

Sua presença é tão marcante na história que Graciliano lhe dedicou um capítulo inteiro, entre os 13 existentes, começando por “Mudança” e terminando com “Fuga”. O capítulo de Baleia é o nono, mas foi o primeiro que Graciliano escreveu, pois pretendia, na época, escrever um pequeno conto sobre a morte do animal. Com o tempo foi acrescentando outros até formar o livro.

É o capítulo mais emocionante da obra. Baleia estava doente, com hidrofobia, sem pelo, apenas pele e osso e o corpo coberto de chagas. Fabiano, então, decide matá-la, para tristeza dos filhos, como se pode ver nessa passagem: "Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam.”

Emprestando sentimentos à cachorra, de uma forma humana, o autor mostra Baleia em seus devaneios, sentindo raiva de Fabiano por causa do tiro, mas ao mesmo tempo sonhando com preás gostosos para comer e depois voltando à realidade que se desenhava à sua frente:

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto, esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladeando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

Prefiro não avançar mais nas citações, porque seria como tirar o prazer e a beleza dessa leitura para quem ainda não a fez, ou até mesmo para quem já fez, como eu, há um bom tempo. E, mesmo assim, sem esquecer da emoção experimentada nesse e em todos os capítulos de um livro que, embora trate de um tema tão árido e triste, consegue extrair poesia e beleza humana em um animal.