sábado, 9 de maio de 2020

Receitas de mãe


Quarta de uma família de sete filhos, minha mãe aprendeu logo cedo a cozinhar, enquanto os outros irmãos se dividiam nas demais tarefas da casa. Assim, a cozinha sempre foi o território que minha mãe mais dominava, aprendendo a fazer pratos para o sustento e deleite da família. Eram comidas simples, mas caprichadas e que foram sendo aprimoradas no decorrer dos anos, nas aulas de culinária do Sesi, no casamento, na maternidade e nas receitas que passou a acumular vida a fora e que se tornaram um de seus maiores prazeres, mesmo que anotadas em lugares cada vez mais estranhos - desde que ao alcance das mãos -, como um ingresso de show deixado na estante e que não tinha sido usado.

Essas lembranças me chegaram com força ao ler Uns Cheios, Outros em Vão, da escritora carioca Heloísa Seixas. O livro traz receitas da mãe da autora, dona Maria Angélica, e contam histórias da família, uma saborosa viagem por lembranças e pratos que evocam a infância tanto da autora, quanto do leitor em si. E foi assim que me identifiquei de imediato com a leitura, indo às lágrimas, especialmente no trecho que Heloísa fala do velho livro de receitas da mãe, encontrado ao remexer no armário da casa:

“(...) Fazia quase tudo de cabeça, inventava, acrescentava ingredientes  - como costumam fazer todos os bons cozinheiros – e não sabia explicar muito bem como tal e tal prato era feito.
Talvez por isso seu livro de receitas seja uma loucura, com doces e salgados misturados, palavras remendadas, páginas faltando e também dezenas de folhas soltas, incluindo anotações de receitas em pedaços de papel de pão, no verso de folhetos com anúncios ou nas bordas dos manuais do liquidificador ou da batedeira de bolo. (...)”

Era bem assim o caderno de receitas da minha mãe, a dona Nair, que, diferente do da escritora, acabou se perdendo, infelizmente. No entanto, minha irmã, quando se casou, passou a fazer um caderno de receitas também, anotando os pratos que minha mãe ensinava, que ainda se conserva, depois de 39 anos (foto), quer dizer, está no mesmo estado que o da mãe da Heloísa, caprichado ao início, mas com receitas doces e salgadas misturadas, folhas soltas, páginas faltando, e já com a letra da minha mãe dominando a maioria das folhas, nas laterais e do jeito que desse.

Uns Cheios, Outros em Vão chegou até a mim em 2015, no Pauliceia Literária, evento literário internacional, promovido pela Associação de Advogados de São Paulo. Heloísa Seixas participou de uma mesa com o escritor e biógrafo Ruy Castro, que é seu marido. Eu já tinha lido dois livros dela – O Lugar Escuro e O Prazer de Ler – e fiquei interessada em Uns Cheios e Outros em Vão, por misturar lembranças com receitas, mesmo não gostando de cozinhar, diferente da minha mãe e irmã.

Aproveitando que a autora estava no evento, levei o livro para ela autografar, e comentei sobre O Lugar Escuro, livro ficcional que trata da doença de Alzheimer que acometeu a mãe de Heloísa. Na dedicatória, a escritora fez referência a esse fato, escrevendo:

“Cecilia, aqui vai o contraponto de ‘O Lugar Escuro’
Com um beijo,
Heloísa Seixas
SP, 24 Set 2015”

De fato, ao ler Uns Cheios, Outros em Vão percebe-se essa diferença. Enquanto em O Lugar Escuro vemos Maria Angélica esquecendo-se das coisas, de si e dos seus, não tendo mais ciência dos seus atos, por causa do Alzheimer, em Uns Cheios, Outros em Vão, ela se mostra em todo o seu esplendor, ativa, vibrante, moderna, elegante, baiana de nascença e carioca por adoção, apaixonada pelas receitas e pela vida:

“Ela era o que naquele tempo se chamava de ‘mulher avançada’. Entre outras coisas, era amiga de muitos dos meus amigos – relacionando-se com eles sem a minha participação – e em mais de uma ocasião acampou conosco em Visconde de Mauá. Viajou com uma amiga para Marrakech, onde experimentou bolinho de maconha (ficou tonta). Em uma de suas viagens ao Havaí, frequentou, junto com a juíza que tinha feito o casamento do meu irmão, o tal campo de nudismo...”

Dona Maria Angélica era dada a ditados, sempre tinha um em mente, e um deles inspirou o título do livro. Uns Cheios, Outros em Vão significa que na vida, assim como nas receitas de bolo, não se pode ter tudo – uns copos ficam cheios, outros em vão. Ela ensinava à filha.

Heloísa começou a organizar o livro em 2012, quando sua mãe, que já estava com Alzheimer há dez anos, fora hospitalizada com pneumonia. vindo a falecer três meses depois. Alguns dos textos que constam no livro, já foram publicados em partes ou ao todo, em revistas ou coletâneas. Outros são inéditos e trazem lembranças da infância da autora, que passava férias na Bahia, na casa dos avós e dos tios, contando as peripécias dos primos – um dos seus primos era Raul Seixas chamado de Raulzito - e os costumes e tradições da família. As histórias são entremeadas pelas receitas do velho caderno de dona Maria Angélica, como a do Bacalhau de Forno, feito nas festas natalinas:

Ingredientes:
Azeite (é o azeite de oliva que usamos, e é chamado assim porque para os baianos, azeite é o de dendê)
1Kg de Bacalhau
1½ cabeça de alho
Pimenta do reino
4 cebolas
4 pimentões
4 tomates
4 batatas
Sal

Modo de preparo:
Unte um pirex com azeite doce, em boa quantidade. Arrume nesse pirex os pedaços de bacalhau previamente fervidos e, em cima de cada pedaço, ponha um dente de alho, uma pitada de pimenta do reino, uma rodela de cebola, outra de pimentão, outra de tomate e, por fim, uma rodela de batata crua, Regue com mais azeita e leve ao forno para assar. Quando as rodelas de batatas estiverem douradas, retire do forno.

Devorei o livro como se devora uma comida saborosa, mas procurando reter o prazer mais um pouco. Marquei algumas receitas do livro para tentar preparar mais para frente, quem sabe... Tenho até um livrinho do Sesi, com receitinhas básicas, que minha mãe me deu. Foi com ele que me aventurei em alguns pratos, e guardo-o com muito carinho. Apesar de não saber fazer muitas coisas, eu me esforço e procuro sempre dar o meu melhor. Acho que a Dona Nair teria orgulho.