sexta-feira, 14 de junho de 2013

No caminho, com Maiakóvski

Nestes dias turbulentos em São Paulo, e por todo o país, lembrei-me de um poema de Eduardo Alves da Costa intitulado "No caminho, com Maiakóvski". Escrito na década de 1960, era uma manifestação de revolta aos terrores da ditadura militar no Brasil.
 
Achei oportuno nesse momento e transcrevo-o abaixo:

 
No Caminho, com Maiakóvski
 
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
 
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
 
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
 
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
 
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
 
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

quarta-feira, 12 de junho de 2013

História de um amor

Na literatura universal, várias são as histórias de amor, fictícias na sua maioria, muitas delas nem sempre acabam bem, como Romeu e Julieta, Tristão e Isolda e Orfeu e Eurídice, entre outras. Em todas estas, contudo, a beleza do amor jovem é retratado em todas as suas nuances, nos encantando sempre, e poderiam perdurar por muito tempo, se a tragédia não acometesse tão cedo. Será? Nunca saberemos, de fato, apenas podemos imaginar.

Recentemente descobri outra história de amor na literatura, com um final igualmente triste, que me comoveu imensamente. Só que com duas diferenças básicas: um amor que chegou à velhice e, mais impressionante, real.
 
O filósofo austríaco André Gorz e sua esposa, a inglesa Dorine, viveram uma grande história de amor e companheirismo que começou em 1947 e durou quase 60 anos. Juntos vivenciaram a pobreza, os primeiros sucessos literários, as mudanças socioeconômicas do mundo, o surgimento da política de meio ambiente e a doença degenerativa que se manifestou em Dorine. Por essa razão, Gorz abandonou tudo e passou a viver recluso com a mulher no início da década de 1990, até a morte deles, por duplo suicídio, em setembro de 2007.

Considerado como um pensador da ecologia política e do anticapitalismo, André Gorz foi um dos fundadores da revista Le Nouvel Observateur, e é autor de livros traduzidos para o português, como Misérias do presente, riqueza do possível, Crítica da divisão do trabalho e O imaterial: conhecimento, valor e capital.
 
A história de amor deles é contada em uma carta, escrita por André um ano antes do suicídio, e encontrada junto aos corpos no quarto do casal. Carta a D – História de um amor foi publicada no Brasil pela Cosac Naify em 2008, com uma tiragem de 5.000 exemplares que se esgotou rapidamente na época.

Não se trata apenas de um romance açucarado, sobre a possível perda do companheiro, mas de uma reflexão sobre o amor, sobre os caminhos que nos levam a ele e sobre o final da vida, no caso do autor e de sua mulher. E não pude aqui deixar de fazer um paralelo com o filme francês Amor, escrito e dirigido por Michael Haneke, premiado com o Oscar de melhor filme em língua estrangeira de 2012.

No filme, a narrativa se foca em um casal idoso aposentado, Anne e Georges. O drama se desenvolve a partir de uma operação da carótida a que Anne é submetida. Alguma coisa dá errado e ela acaba com um lado do corpo paralisado. Lentamente Anne vai se degenerando e Georges se isola com a mulher tentando de todas as formas cuidar dela. O final é presumível, embora terrível.
Apesar de semelhantes, as histórias se divergem em alguns aspectos, pois o filme é bastante duro, sem complacência, mostrando a velhice e o fim da vida de maneira cruel, sem concessões. O livro-carta de Gorz é mais uma tentativa de registrar, ou melhor, de explicar à mulher o seu grande amor por ela. O início é bastante poético e vale a pena ser citado, como um dos melhores começos de um livro...,
 
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e se mantém bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu te amo mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
... mas no percurso, a carta vai se transformando numa expiação do filósofo, narrando o começo de tudo, quando conheceu Dorine, seus primeiros encontros, o namoro, a vida em comum, seus isolamentos quando escrevia, a influência da mulher em seus escritos, o sentido que ela buscava dar na vida dele, seus valores, suas crenças, sua consciência sobre o meio ambiente, a dor com a descoberta da doença, os tratamentos e a vida reclusa em uma casa de campo, em contato com a natureza.
Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que nos tornássemos o que somos; um pelo outro. Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos.
Gorz relata que Dorine era uma mulher fascinante que crescia na adversidade, enquanto ele ficava paralisado. Ativa e incansável, ela foi diagnosticada, entre 1973/1974, com aracnoidite, uma meningite química, uma inflamação da aracnoide, uma das membranas que recobrem o cérebro e a medula espinhal. Essa inflamação foi causada por resíduos de um contraste para radiografia da coluna, aplicado em Dorine quando ela precisou se submeter a uma cirurgia de hérnia de disco oito anos antes.
A substância contrastante utilizada na época foi o lipiodol, feita de óleo de papoula, que deveria ter sido eliminado do corpo, o que não aconteceu. Dorine passou então a sentir terríveis dores de cabeça e no corpo, que foram incapacitando-a, pouco a pouco, para as mais simples atividades. Os remédios causavam efeitos colaterais e cirurgia era uma solução delicada, razão pela qual Dorine resolveu abandonar os medicamentos e passou a praticar ioga.
Ao mesmo tempo, Gorz decide se aposentar e passa a cuidar de Dorine com aplicação, em uma casa de campo, cozinhando para ela alimentos saudáveis e desfrutando intensamente de sua companhia. No entanto, ele chega a desabafar na carta: “Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha em sua aflição.”
Talvez por isso a ideia do suicídio chegou mais forte. Tanto para Gorz quanto para Dorine seria terrível viverem um sem a companhia do outro. Era melhor que fossem juntos, esperando assim, em outra dimensão, reviverem o grande amor que ambos manifestavam:
À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier cantando: “o mundo está vazio, não quero mais viver”, e desperto. Eu vigio sua respiração, minha mão toca você. Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos.
É um final triste, como a maioria das histórias de amor. Esta, no entanto, é uma grande história de amor; como poucas... como muitos queriam viver.  

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Voo em português

– Vocês pensam que a língua portuguesa é usada somente no Brasil e em Portugal? Pois saibam que ela é um dos idiomas mais falados do mundo! É a língua oficial em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Leste e em lugares como Macau, Damião e DIU e Goa.
– Goa? Onde fica isso? – perguntou Juarez...
– Na Índia!
 
O diálogo acima é travado entre Miguel e seu amigo Juarez no livro Voa em português – uma viagem pelos países da língua portuguesa, de Cristina Von, publicado pelo Instituto Cal lis. No enredo, Miguel, um jovem residente em Bragança Paulista, interior de São Paulo, sonha com animais do campo e aviões. Sua vida é dividida entre a fazenda do avô e o aeroclube da cidade, dessa forma ele se torna veterinário, mas não se furta a tirar o brevê e pilotar aviões, imaginando, um dia, empreender uma grande viagem.
 
Sua vida transcorre normalmente até que surge a oportunidade de adquirir um avião, o “Corisco” e, com ele, a possibilidade de realizar seu sonho de viajar pelos países em que a língua portuguesa é falada. Assim, ele faz um planejamento de forma a passar e conhecer a cultura dos diversos países que tem o português como língua oficial, empreendendo uma viagem emocionante e de grande conhecimento.
 
O livro é uma graça e, desde sua publicação, no final do primeiro semestre de 2012, fiquei bastante interessada em lê-lo, pois sou fascinada pela língua portuguesa e, como Miguel, sonho em conhecer os países que também falam o nosso idioma, sobretudo Lisboa. Com suaves ilustrações de Thiago Lopes, a obra vem acompanha de um CD, produzido conjuntamente, com a leitura do poema “Navio negreiro”, de Castro Alves, por várias pessoas que têm o português como língua nativa, mostrando as diferenças nos falares. Uma verdadeira joia.
 
Neste 10 de junho, em que se recorda a morte de Luiz Vaz de Camões, poeta de Portugal, uma das maiores figuras da literatura em língua portuguesa, nada mais oportuno do que recomendar esse livro, que traz curiosidades interessantes como nesta passagem em que Miguel fica conhecendo um pouco mais sobre o grande poeta:
 
Em Macau, Camões continuou os seus escritos, vivendo em uma gruta. Dizem que o escritor naufragou na foz do rio Mekong e que, entre salvar a sua companheira chinesa, Dinamite, celebrada em sonetos, preferiu salvar os manuscritos de Os Lusíadas...
– E sua amada morreu? – perguntou Miguel perplexo.
– Faleceu. Em benefício da língua portuguesa, diga-se de passagem.
 
Ou ainda sobre o folclore envolvendo a origem do Timor Leste:
 
Conta à lenda que, certo dia, um rapaz ajudou um crocodilo a atravessar a lagoa para entrar no mar. O crocodilo ficou grato e prometeu que se lembraria dele para sempre. Algum tempo depois, o rapaz foi à beira do mar e chamou o crocodilo. Sentou-se nas costas do animal e os dois viajaram juntos durante anos. Embora fossem amigos, um dia os crocodilos sentiu uma vontade irresistível de devorar o rapaz, mas envergonhado, desistiu da ideia. Quando ficou velho, o animal disse ao amigo: “Em breve morrerei e formarei uma terra para ti e para todos os teus descendentes”. Então, quando morreu, o crocodilo transformou-se na ilha de Timor, dando a ela a sua forma. É por essa razão que o povo de Timor chama o crocodilo de “Avô”.
 
Se aventurar por Voo em português é empreender uma viagem e tanto. É conhecer diferentes culturas, sua gastronomia, suas palavras similares e suas influências. São países que, embora geograficamente localizados em pontos divergentes, tem o idioma em comum. Tudo isso significa que, atualmente, mais de 200 milhões de pessoas no mundo falam o português.