quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Um vampiro em minha vida

Adoro fazer testes, destes que aparecem na internet perguntando uma série de coisa para saber qual sua personalidade, que personagem de desenho animado você é, se sua idade real é igual a sua idade física e emocional, e por aí vai... essas bobagens todas que às vezes não servem para nada, a não ser para afagar o nosso ego, mostrando a nós o quanto somos maravilhosos, inteligentes, saudáveis...

Mas outro dia, dois testes, vistos no blog http://www.orelhadelivro.com.br/, me chamaram muita atenção pela simples razão de estarem ligados aos livros e a literatura. O primeiro, que serve para descobrir “Qual gênero literário é a sua cara?”, do blog da Estante –Virtual
http://www.estantevirtual.com.br/blogdaestante/2010/07/16/qual-genero-literario-e-a-sua-cara/ , é pura diversão. Eu fiz e tive como resposta “Romance e Poesias”. Acho até que se encaixou comigo, se bem que ando devendo um pouco mais à poesia nas minhas leituras.

O segundo, mais interessante, visa responder à pergunta “Que livro é você?”, do site Educar para Crescer - http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/testes/livro-nacional.shtml . Nem é preciso dizer que este mexeu mais comigo, afinal, quem não tem a curiosidade de saber que livro se parece consigo. Por isso, mais do que depressa resolvi fazer e, para minha surpresa o resultado foi O Vampiro de Curitiba, talvez o livro mais famoso do escritor curitibano Dalton Trevisan.

O curioso é que não li o livro e, um tanto decepcionada com o resultado acabei refazendo o teste. Mais uma vez o livro apareceu. Bom, decidi acatar, pelo menos naquele dia, porque tempos depois fiz novamente o teste e pela terceira vez saiu O Vampiro de Curitiba.

Tá, tudo bem, aceito. O jeito é ler o livro e tirar essa dúvida. De repente, é o livro da minha vida” – pensei.

Não, definitivamente não é o livro da minha vida, mas é bem legal. Gostei sobretudo do estilo do autor, que escreve não de uma forma convencional, às vezes trocando a ordem da frase, truncando palavras. É preciso ler com atenção, mas depois que você se conecta, acaba se encantando com a escrita, como neste pequeno trecho:

Aos trancos, arrastou-se o elevador ao segundo andar. Não fosse herói de caráter, esquecia o embrulho ali na porta e adeus, dona Alice. Gemeu baixinho – afinal, a primeira professora da gente, ensinara-o a ler, escrever o nome, as quatro operações – e apertou a campanhia.

São histórias curtas, com linguagem leve e concisa, que giram em torno de um personagem, Nelsinho, rapaz que perambula pela cidade, no caso Curitiba, em busca de amor e sexo. Dessa forma ele encontra viúvas, velhinhas, moças, prostitutas, não importa, em todas elas busca o consolo do qual precisa.

O bom do livro é essa coisa de urbanidade, que eu adoro, ainda mais em se tratando de Curitiba, cidade que conheci aos 15 anos e nunca mais esqueci. Se bem que no livro, a cidade aparece em seus aspectos frio e decaído, mas isso também faz parte das grandes metrópoles.

Tirada a prova dos nove acho que só tive a ganhar com essa leitura. E contabilizando os prós e os contras até que os testes tiveram algo a ver comigo, pelo menos assim me pareceram.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sobre grupos, livros e cafés

Sempre tive vontade de participar de grupos de literatura... sabe, aqueles encontros semanais em que pessoas se reúnem para ler e discutir um livro, falar suas impressões, trocar ideias, aprender com o ponto de vista do outro, se aprofundar mais em uma determinada leitura.

Em 2007 cheguei a frequentar um desses grupos, o do Laboratório de Humanidades, da Unifesp, que semanalmente reúne alunos da graduação e pós-graduação da área de saúde, além de pessoas da comunidade, para falar de Literatura. Era muito legal, porque a proposta era falar não a história do livro que estávamos lendo, mas sim a história da leitura desse livro, o que sentimos, o que pensamos, o que vivemos enquanto líamos, o que representou para a gente. Acho que é mais ou menos isso o que tento fazer neste blog, embora ainda esteja um pouco longe disso. Seja como for, acabei saindo do grupo por causa do horário – às reuniões são às sextas-feiras, das 12h30 às 13h30 –, e ficou inviável por causa do meu trabalho.

Já no ano passado tentei outro grupo, um que trabalha com arteterapia, e se reúne para ler e falar sobre poesia. Frequentei pouco e saí, outra vez por problemas de horário. Tentei até voltar , mas acabei não conseguindo.

Agora, estou à deriva, mas o desejo de participar desses grupos foi instigado novamente quando da leitura, recente, de Lendo Lolita em Teerã, da professora e escritora iraniana Azar Nafisi. O livro trata da experiência de Azar quando reuniu, clandestinamente, um pequeno grupo de alunas em sua casa, em Teerã, para ler e discutir a obra-prima de Nabokov e outros clássicos ocidentais de Jane Austen, F. Scott Fitzgerald, Henri James, entre outros.

Comecei a ler o livro, emprestado de uma biblioteca, pouco antes de ir à Festa Literária de Paraty em julho deste ano, que contou com a presença da escritora, mas não consegui terminar a leitura a tempo e precisei devolver o livro. Mas na Flip comprei o livro, assisti à mesa de Azar Nafisi e corri para o autógrafo. Simpática, sorridente e atenciosa, a escritora, quando chegou a minha vez, ainda cantou um trecho da música Cecilia, de Simon and Garfunkel, quando viu meu nome, e me deixou muito feliz com a bela dedicatória.

Ao chegar de viagem, com o livro na bagagem, apressei-me a ler, agora com mais tranquilidade e resolvi retomar a leitura do início para não perder nenhum detalhe que ficou da primeira leitura apressada.

Além do prazer desfrutado pela intimidade desses encontros, recheados de boa literatura e discussões, tão bem narradas, a autora nos brinda com uma contextualização dos primeiros dias da revolução islâmica, liderada pelo aiatolá Khomeini, em 1979, quando ela começou a lecionar na Universidade de Teerã, passando pela ditadura que se seguiu até chegar a criação do clube de leitura e sua saída do país, em 1997. Hoje ela vive radicada nos Estados Unidos.

Foi uma leitura bastante prazerosa, sobretudo por se tratar de uma verdadeira declaração de amor aos livros, com referências à boa literatura inglesa. Mas não só. Tive também outro sentido aguçado enquanto lia: o do paladar. Em meio às discussões sobre livros, política, vida cotidiana dos iranianos, sobretudo das mulheres, Azar descreve cenas em que, acompanhada de amigos ou de suas “meninas”, degusta sorvetes e cafés, principalmente café turco e café glacê. Várias vezes, como neste trecho.

“Nosso apetite parecia insaciável. Laleh pediu creme de caramelo e eu, duas bolas de sorvete de baunilha e café, acompanhados de café turco e uma porção de nozes. Espalhei as nozes cuidadosamente pelo café embebido no sorvete...”

E aqui:

Neste momento, o garçom chegou com o pedido, um café glacê. Então, olhei para Manna e falei com o garçom. Um pouco mais tarde você poderia trazer para nós um café turco? Minha mãe tinha estabelecido o hábito de servir café turco para nossa turma e, desde então, passamos a ler os nossos destinos na borra do café..."

Não é preciso nem dizer que fiquei com vontade de tomar esses cafés, tanto que até fui pesquisar sobre eles na internet. O café glacê é uma bebida refrescante que combina uma série de elementos para produzir um café espumante e delicioso. Uma das formas é fazê-lo é misturar bolas de gelado de café, expresso, natas, chantilly e licor Baileys. Hummm delícia!

Já o café turco é feito com moagem mais fina possível de pó, colocando o mesmo diretamente na água fria, onde ocorre uma rápida infusão. Em geral, é feito já açucarado e pode levar especiarias – a mais comum é a semente do cardamomo.

Para não errar, aqui vai a receita. Depois é só saborear.

Ingredientes:

100 a 150 gramas de café moído
2 litros de água fervente
2 ½ xícaras (chá) de leite quente
Açúcar cristal ou açúcar mascavo
Cardomomo e canela

Modo de preparo:

Esquente um ou dois bules de cerâmica ou de louça, que tenham tampa, enchendo-os com água quente. Retire a água depois de aquecer por 10 minutos. Coloque o café nos bules e despeje a água fervente por cima. Mexa e tampe. Depois de um minuto, passe uma colher de metal pela superfície para ajudar a sedimentar o café. Recoloque as tampas e deixe em infusão durante mais quatro minutos, aproximadamente. Pode-se adicionar especiarias moídas muito finas, como cardamomo e canela, á mistura de água e café. Sirva imediatamente acompanhado de leite quente (sem ferver) e açúcar cristal ou mascavo, servidos à parte.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A tal da fidelidade

Toda vez que encontro Gil na plataforma do metrô Sé, quando retorno do trabalho para casa, ela está com um livro nas mãos, às vezes até dois. E a primeira coisa que pergunto, depois de cumprimentá-la é:

– Que livro você está lendo?

É inevitável. Mas ontem, ao encontrá-la, antes que eu pudesse fazer a indefectível pergunta, ela se adiantou e me mostrou um dos livros que estava entre suas mãos: Marcelino Pedregulho, do cartunista francês Jean-Jacques Sempé – que também é autor do livro –, lançado no Brasil pela Cosac Naify. No livro Sempé usa o humor sutil para tratar de temas curiosos. O livro trata de um menino, Marcelino, que se enrubescia por qualquer coisa e, por isso, se achava diferente, até que encontrou um amigo também diferente. É história de amizade sincera que nasce das diferenças e dos encontros que ela suscinta.

O interessante de tudo isso é que no mesmo dia, Gil havia me enviado um e-mail com o link do seu blog (http://lendoparavoce.blogspot.com/), onde ela colocou um trecho do livro, que fora emprestado de uma amiga. Achei lindo! E, entusiasmada e generosa como ela só, ofereceu o livro para eu ler.

Quero sim – respondi. Mas você não tem de devolvê-lo à Andreia? – acrescentei.

Sim, mas ele é fácil de ler. E depois a gente marca de se encontrar aqui na semana que vem.

Está bem, então. Agora estou lendo mais rápido.

Enviei aquele trecho do livro para a Michele também. E ela disse que a gente precisa se encontrar.

É verdade.

Entramos no trem e notei o outro livro que Gil carregava – Sábado, de Ian McEwan – e começamos a falar sobre nossas leituras.

– Eu agora estou lendo este (Gil mostrou Sábado) e Dom Quixote – Gil falou.

Eu não consigo ler dois livros ao mesmo tempo, apenas um – disse.

– Eu já não consigo ficar só com um.

– É que eu prefiro me debruçar só sobre aquele que estou lendo, ter a atenção voltada só para ele.

– Você é fiel.

Achei graça no comentário dela. De fato, por mais que eu tente, não consigo ler dois livros ao mesmo tempo. Depois só me interesso por um e, enquanto estou com ele, fico pensando, sonhando e ansiando pela leitura, então é difícil me dividir com outro. Depois misturo as histórias e não dá certo . Talvez seja a tal coisa da fidelidade mesmo.

Mas seja como for, fiquei fascinada pelo livro que Gil me emprestou. Tanto que fiz de tudo para terminar hoje a leitura do livro que estava lendo (ainda bem que era curto e eu estava no fim mesmo), só para começar a ler Marcelino Pedregulho. Tenho certeza de que vou gostar... já estou gostando só de olhar a capa e folhear algumas páginas. Agora, só ele me interessa.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Ouvir é ler

Setembro é o mês da Bíblia na igreja Católica, instituição que busca, neste período, intensificar mais a reflexão das leituras do Novo e do Velho Testamento, embora, é claro, todo dia é uma oportunidade incomensurável para se debruçar sobre as páginas do Livro Sagrado.

Bíblia é uma palavra que vem do grego, que quer dizer “rolo” ou “livro” e constituiu-se no texto religioso central do cristianismo. A Bíblia é uma coleção de livros catalogados, considerados como divinamente inspirados pelas três grandes religiões dos filhos de Abraão – cristianismo, judaísmo e islamismo.

O Livro Sagrado foi escrito ao longo de um período de cerca de 1.600 anos, por 40 homens das mais diversas profissões, origens culturais e classes sociais, segundo a tradição judaico cristã. Compõe-se de duas partes: o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Com relação ao primeiro, há divergências entre católicos e cristãos da quantidade de livros escritos, em torno de 46. Já o Novo Testamento conta com 27 livros.

Seja como for, lembrei-me, há pouco tempo, de uma passagem da Bíblia, mais especificamente do Novo Testamento, que é uma das minhas preferidas. É do Evangelho de São Lucas, o terceiro de um total de quatro, que narra a história da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

O trecho é curtinho e encontra-se no capítulo 10, versículos 38-42. Começa assim:

“Naquele tempo, Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres. Ela aproximou-se e disse:
– Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!
O Senhor, porém, lhe respondeu:
– Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada.”

Sempre que escuto – escuto é a palavra certa, já que o ouço na igreja – este trecho mais reflexões tiro dele. Mas não vou me alongar muito. Penso que é como se eu estivesse lendo o texto e fico a imaginar Marta, atarefada, arrumando a casa e preparando a refeição para bem agradar ao Senhor; e Maria, a deixar tudo o mais de lado para sentar-se aos pés de Cristo e aprender seus ensinamentos. Ambas querem agradar a Ele, mas é Maria quem melhor faz isto, pois não se furta da companhia do Mestre e de apreciar suas sábias palavras. E ainda há um outro detalhe: numa época em que as mulheres eram relegadas a segundo plano, Maria teve o privilégio de receber os ensinamentos do próprio Senhor. E isso não era pouca coisa, ao contrário, por isso ela escolheu a melhor parte e esta não lhe seria tirada. Maria preferiu ficar ouvindo Cristo, refletindo suas palavras e assimilando sua mensagem, como se estivesse lendo. Acho que ouvir é também ler, como escrever é falar.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O melhor amigo

O Dia do Amigo foi há dois meses, mas somente hoje resolvi falar no assunto. Não importa, afinal, todo o dia é dia da amizade. Por isso, peço licença para falar de um amigo querido que tive na adolescência. Lembrei-me dele esses dias, quando revirando anotações antigas, encontrei um poema que ele apreciava muito, e que sempre recitava para falar da sua paixão, não correspondida, por uma amiga que eu tinha. Era lindo ouvi-lo declamar e, por isso mesmo, dava-lhe a maior força nas suas investidas amorosas.

O nome do poema, na verdade um soneto, eu não sei ao certo, mas sei que é de autoria de Eugênio de Castro (1869/1944), escritor português.

O meu amigo era um garoto comum na sua aparência, não tinha nada de especial. Magro, alto, cabelos loiros fartos, olhos castanhos que se podiam vislumbrar através de um óculos de aro de metal. Gostava de futebol e vivia rodeado de amigos. Mas o que o distinguia, afinal? Além da inteligência, a atenção que dispensava aos meus constantes questionamentos de adolescente. Acho que foi isso, sim, que o fez tornar-se meu melhor amigo, fazendo com que eu experimentasse um dos sentimentos mais bonitos que se pode ter por uma pessoa.

O tempo passou, eu mudei de cidade e nossos caminhos tomaram rumos diferentes. Voltei a encontrá-lo 13 anos depois, já um homem feito, casado, pai de duas crianças lindas e um executivo de primeira. Foi bom. Só que ele acabou mudando com a família para os Estados Unidos e ficamos mais um período sem nos vermos até que o encontrei em uma reunião de amigos há três anos, mas pouco nos falamos. Na despedida, porém, ele me deu um abraço carinhoso e disse no meu ouvido que estava com saudades. Era o meu amigo volta, o mesmo amigo de sempre. Não pude deixar de me emocionar. E isso foi tudo.

Hoje, relendo o pequeno poema, que transcrevo abaixo, tudo vem à tona novamente, numa lembrança gostosa de uma amizade que nem o tempo nem a distância foram capazes de apagar do meu coração. E tenho certeza de que do dele também.


Tua frieza aumenta o meu desejo:
fecho os meus olhos para te esquecer,
mas quanto mais procuro não te ver,
quanto mais fecho os olhos mais te vejo.

Humildemente, atrás de ti rastejo,
humildemente, sem te convencer,
enquanto sinto para mim crescer
dos teus desdéns o frígido cortejo.

Sei que jamais hei-de possuir-te, sei
que outro, feliz, ditoso como um rei,
enlaçará teu virgem corpo em flor.

Meu coração no entanto não se cansa:
amam metade os que amam com esperança,
amar sem esperança é o verdadeiro amor.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Criador e criatura

Na história da humanidade, o mito da criação e o consequente desejo de se igualar ao Criador sempre permearam os pensamentos do homem. Já nos primórdios, a narrativa bíblica no Gênesis fala da construção de uma torre, cujo objetivo era fazer com que o cume chegasse ao céu para não se espalharem pela Terra. Diante dessa “ousadia”, Deus confundiu a linguagem dos seus “construtores” fazendo-os parar em seu projeto. O episódio ficou conhecido como Torre de Babel, ou seja uma mistura confusa de várias línguas faladas ao mesmo tempo.

Na era moderna, a fertilização “in vitro” e, mais recentemente, a clonagem de seres vivos têm ampliado a possibilidade do homem de se tornar criador da vida humana. Será que isso, um dia, acontecerá de fato? Bom, ao menos na ficção essa probabilidade muitas vezes nem mais é questionada, tendo em vista sua concretude na literatura.

No romance de ficção científica, O caçador de androides, do escritor norte-americano Philp K. Dick, e adaptado esplendorosamente para o cinema, sob a direção de Ridley Scott, narra a história de Rick Deckard, um caçador de recompensas profissional numa Terra futurista no ano de 2021. Ele tem a missão de procurar e retirar do planeta um grupo de androides de última geração (seres-robôs de aparência humana, que reproduzem os movimentos do corpo humano), rebelados em busca de uma vida livre da servidão aos humanos.

Uma das cenas de maior impacto, para mim, é quando o replicante Roy Batter, o líder da revolta, já sentindo suas forças minarem e seu tempo na terra chegar ao fim, se depara com seu criador, Tyrell, e suplica:
– Quero mais vida, pai!

É o limite da criatura ao esbarrar com seu final iminente, por isso clama por mais tempo. Ele, embora feito à imagem e semelhança do criador, o mais perfeito que se possa conseguir fazer, não consegue chegar à "imortalidade" do seu criador (ainda que este também seja mortal) e, assim, a uma vida eterna.

O mesmo embate entre criador e criatura temos em Frankenstein, da escritora britânica Mary Shelley, o romance de terror gótico, que conta a história de Victor Frankenstein, um estudante de ciências naturais que, obcecado pela imortalidade, constrói um ser, mas acaba se arrependendo em razão da criatura se assemelhar a um monstro, de estatura gigantesca e com várias marcas de cirurgias ao qual foi submetido pelo criador. Ao abandonar sua criatura, Frankenstein foge à sua responsabilidade para com o ser criado. Este, largado à própria sorte, acaba se transformando num ser verdadeiramente monstruoso.

Mais recentemente, essa mesma questão se apresentou à minha frente quando da leitura de Coração de Tinta, literatura infantojuvenil da escritora alemã Cornelia Funke. A história gira em torno do encadernador Mo, cuja habilidade é dar vida aos personagens dos livros quando lido em voz alta. Mas, ao fazer isso, acabou colocando sua vida e a vida da esposa e da filha, Meggie, em perigo, por causa do vilão sanguinário, Capricórnio, que saiu da obra Coração de Tinta. A intenção do bandido é fazer com que Mo traga do livro um malvado ainda mais terrível que ele.

Vilanias à parte, a história é bastante interessante e constitui-se numa verdadeira declaração de amor aos livros, já que o objeto principal do romance é o próprio livro, com diversas citações a ele. Mas o legal é a parte em que Fenoglio, criador de Coração de Tinta e de seus personagens, encontra sua criatura, frente a frente.

“– Por todas as letras do alfabeto! – sussurrou Fenoglio quando andava junto com Meggie pela nave central da igreja, com Basta em seus calcanhares. – Ele é exatamente como eu o imaginei. ‘Pálido como um copo de leite’, sim, acho que foram essas as palavras que usei.
Ele começou a andar mais depressa, como se não aguentasse esperar para ver de perto sua criatura...
... Fenoglio não desgrudava os olhos de Capricórnio por um só instante. Ele o observava como um artista que, depois de longos anos, revê um quadro que pintou. E, a julgar pela expressão do seu rosto, estava gostando do que via. Meggie não conseguia ver nenhum vestígio de medo em seus olhos, apenas uma curiosidade quase incrédula e satisfação, satisfação consigo mesmo. Capricórnio não gostou desse olhar, como Meggie também notou. Ele não estava acostumado a ser encarado tão destemidamente, como fazia o velho escritor.
– Basta me contou algumas coisas estranhas a seu respeito, senhor...
– Fenoglio.
Meggie observou o rosto de Capricórnio. Ele teria lido alguma vez o nome que ficava na capa de
Coração de Tinta, logo embaixo do título?
– Até mesmo a voz dele é como imaginei! Fenoglio sussurrou para Meggie.
Ele parecia encantado como uma criança diante da jaula do leão.”

Esses três momentos na literatura que tratam da dualidade entre criador e criatura (há bem mais) são extremamente fascinantes e nos faz refletir nessa questão. O primeiro coloca em xeque a limitação da vida da criatura, clamando ao criador mais tempo de existência, como se isso fosse possível; o segundo é o horror do criador diante do ser criado e seu propósito de abandono a fim de eximir da responsabilidade para com a criatura; e o terceiro é o momento do êxtase, quando o criador se vê maravilhado com a obra criada, reproduzida exatamente como ele idealizou.

Na ficção tudo é possível e é legal que isso aconteça, mas ao fecharmos as páginas dos livros, retomamos ao nosso real e sabemos que a lógica não é tão simples assim. Isso me faz lembrar uma frase do saudoso jornalista e radialista Hélio Ribeiro, em seu livro O Poder da Mensagem, que diz mais ou menos assim:

“O grande sofrimento do criador: tirar tudo de um nada qualquer, e depois ser julgado por qualquer um que nem com todos os tudos do mundo seria capaz de fazer um simples quase.”
Acho que não é preciso dizer mais nada.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Biblioteca itinerante

Estou sempre pensando, sonhando, escrevendo e falando sobre bibliotecas. Não sei ao certo quando aprendi a amar uma biblioteca, mas o fato é que desde que me conheço por gente eu sou assim, vivo atrás de bibliotecas. E depois que um amigo me falou – já comentei aqui – que o seu filho, no futuro, não frequentará bibliotecas, me deixando indignada, a paixão aumentou ainda mais e me sinto cada vez mais integrada e ligada com as bibliotecas.
Como bem lembrou o historiador Robert Darnton, na Flip 2010, “biblioteca não é um armazém de livros, mas o local onde os textos e as pessoas se encontram”. Por isso, hoje elas são dinâmicas, modernas e continuam a missão de transmitir o conhecimento.

Assim, não foi à toa que na Bienal Internacional do Livro, que aconteceu em agosto em São Paulo, fiquei encantada quando me deparei com uma Biblioteca Móvel, confortavelmente estacionada no Pavilhão da Bienal, em meio aos estandes e montagens da grande feira literária. Quando o avistei, mais do que depressa quis subir para o ônibus e conhecer esse belo trabalho.

Não há aquela fileira de bancos como existe nos ônibus comuns, no veículo-biblioteca foi adaptado, com prateleiras para acomodar os livros, convidando os passageiros à leitura. Para tanto, há um banco estofado e comprido, em cada lado, do ônibus para que o leitor possa se sentar e ler com mais conforto e tempo. O meio do ônibus é livre, para circulação. Há ainda telão, computadores, impressora, TV, vídeo, DVD e sistema de som.

O acervo conta com 1.500 títulos, entre livros de ficção, romances, didáticos e infantil. Não é por acaso que seus frequentadores mais assíduos são crianças, guiados por monitores que encontram-se disponíveis para prestar informações e orientações.

A Biblioteca Móvel Itapemirim estava aportada na Bienal, nas duas semanas em que a feira se realizou, mas viaja por todo o Brasil, incentivando a leitura e disseminando a informação. A cada mês, a biblioteca fica acampada em três localidades diferentes, sendo uma semana em cada local. Ao aportar em um lugar, é armado um toldo para atendimento externo e mesas e cadeiras são dispostas do lado de fora para quem desejar ler ao ar livre.

Outras atividades são desenvolvidas além da leitura, como oficinas lúdicas, teatro de fantoches, contação de histórias, encontro com autores, exposições, palestras, concursos, apresentações musicais, entre outras.

Esse projeto, criado e desenvolvido pela professora Walda Antunes, conta com quatros anos de existência, tendo percorrido 200 localidades, em 19 estados do Brasil. O projeto tem parceria da Maurício de Souza Produções, sendo que seus personagens também viajam com a biblioteca para conquistar ainda mais leitores.

São iniciativas dessa natureza que me fazem crer que as bibliotecas estão mais vivas do que nunca, se reestruturando, se adaptando, se modernizando , se reinventando para promover o incentivo à leitura e a disseminação do conhecimento.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Um dia iluminado

Com o sol brilhando forte todos esses dias, apesar da baixa umidade, lembrei-me de uma passagem do livro Olhai os Lírios do Campo, do escritor gaúcho Érico Veríssimo, que li em janeiro de 1983 e recentemente transcrevi o trecho no meu outro blog, o Leituras que não esqueço.

O livro narra a história de Eugênio Fontes, um homem que com sacrifício formou-se em Medicina. Na faculdade ele conhece e se apaixona por Olívia, com quem teve uma filha, mas, ambicioso, acaba se casando com uma mulher rica, Eunice.

Nesse romance, Veríssimo compõe um painel de tipos humanos onde o conflito segurança x felicidade está sempre em evidência.

A lembrança da passagem não poderia ter sido mais propícia, já que tem tudo a ver com esta sexta-feira, de sol forte, céu límpido e bonito que nos convida ao lazer, embora estejamos encerrados em escritórios na labuta diária, pensando numa vida mais digna e em aproveitar o tempo num futuro próximo. E, no entanto, é tão pouco aquilo que precisamos para sermos felizes. Basta sair à rua e sentir o calor do sol. Dúvida? Então leia e aproveite melhor a sua vida...

"Se naquele instante – refletiu Eugênio – caísse na terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas e fábricas... E se perguntasse a qualquer um deles: 'Homem, por que trabalhas com tanta fúria durante as horas do sol?' – ouviria esta resposta singular: 'Para ganhar a vida'. E no entanto a vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitavam-se na terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam. A competição os transformavam em inimigos. E havia muitos séculos tinham crucificado um profeta que se esforçava por lhes mostrar que eles eram irmãos, apenas e sempre irmãos."

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Pequenos gestos compartilhados

O bom da internet e das mídias sociais são as amizades que podemos fazer, a troca de experiências e carinhos, o compartilhamento de pequenos gestos, como esta mensagem abaixo que recebi de uma amiga que começou virtual e depois se tornou real: a Michele. Com ela compartilhei bons momentos e alegrias, mas também a mesma dor que, dividida, tem se tornado mais suportável.

Por isso, hoje gostaria de deixar a mensagem que ela me enviou aqui registrada. É um texto de Rita Apoena, poeta menina, estudante de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Espero que gostem.


O amor nos pequenos gestos

"Sabe, acho que ninguém vai entender. Ou se entender não vai aprovar. Existe em nossa época um paradigma que diz: enquanto você me der carinho e cuidar de mim, eu vou amar você. Então, eu troco o meu amor por um punhado de boas ações. Isso a gente aprende desde a infância: se você for um bom menino, eu vou lhe dar um chocolate. Parece que ninguém é amado simplesmente pelo que é, por existir no mundo do jeito que for, mas pelo que faz em troca desse amor. E quando alguém, por alguma razão muito íntima, corre para bem longe de você? A maioria das pessoas aperta um botão de desliga-amor, acionado pelo medo e sentimentos de abandono, e corre em direção aos braços mais quentinhos. E a história se repete: enquanto você fizer coisas por mim ou for assim eu vou amar você e ficar ao seu lado porque eu tenho de me amar em primeiro lugar. Mas que espécie de amor é esse? Na minha opinião, é um amor que não serve nem a si mesmo e nem ao outro.

Eu também tenho medo, dragões aterrorizantes que atacam de quando em quando, mas eu não acredito em nada disso. Quando eu saí de uma importante depressão, eu disse a mim mesma que o mundo no qual eu acreditava deveria existir em algum lugar do planeta. Nem se fosse apenas dentro de mim… Mesmo se ele não existisse em canto algum, se eu, pelo menos, pudesse construí-lo em mim, como um templo das coisas mais bonitas em que eu acredito, o mundo seria sim bonito e doce, o mundo seria cheio de amor, e eu nunca mais ficaria doente. E, nesse mundo, ninguém precisa trocar amor por coisa alguma porque ele brota sozinho entre os dedos da mão e se alimenta do respirar, do contemplar o céu, do fechar os olhos na ventania e abrir os braços antes da chuva. Nesse mundo, as pessoas nunca se abandonam. Elas nunca vão embora porque a gente não foi um bom menino. Ou porque a gente ficou com os braços tão fraquinhos que não consegue mais abraçar e estar perto. Mesmo quando o outro vai embora, a gente não vai. A gente fica e faz um jardim, qualquer coisa para ocupar o tempo, um banco de almofadas coloridas, e pede aos passarinhos não sujarem ali porque aquele é o banco do nosso amor, do nosso grande amigo. Para que ele saiba que, em qualquer tempo, em qualquer lugar, daqui a não sei quantos anos, ele pode simplesmente voltar, sem mais explicações, para olhar o céu de mãos dadas.

No mundo de cá, as relações se dão na superfície. Eu fico sobre uma pedra no rio e, enquanto você estiver na outra, saudável, amoroso e alto-astral, nós nos amamos. Se você afundar, eu não mergulho para te dar a mão, eu pulo para outra pedra e começo outra relação superficial. Mas o que pode ser mais arrebatador nesse mundo do que o encontro entre duas pessoas? Para mim, reside aí todo o mistério da vida, a intenção mais genuína de um abraço. Encontrar alguém para encostar a ponta dos dedos no fundo do rio – é o máximo de encontro que pode existir, não mais que isso, nem mesmo no sexo. Encostar a ponta dos dedos no fundo do rio. E isso não é nada fácil, porque existem os dragões do abandono querendo, a todo instante, abocanhar os nossos braços e o nosso juízo. Mas se eu não atravessar isso agora, a minha escrita será uma grande mentira, as minhas histórias serão todas mentiras, o meu livrinho será uma grande mentira porque neles o que impera mais que tudo é a lealdade, feito um Sancho Pança atrás do seu louco Dom Quixote. É a certeza de existir um lugar, em algum canto do mundo, onde a gente é acolhido por um grande amigo. É por isso que eu tenho de ir. E porque eu não quero passar a minha existência pulando de pedra em pedra, tomando atalhos de relações humanas. Eu vou mergulhar com o meu amigo, ainda que eu tenha de ficar em silêncio, a cem metros de distância. Eu e o meu boneco de infância, porque no meu mundo a gente não abandona sequer os bonecos que foram nossos amigos um dia.

Agora em silêncio, tentando ensinar esses dragões a nadar.