quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Joyce, 135; Ulysses, 95

Há exatos 135 anos nascia James Joyce, um dos escritores mais controversos e esquisitos do século XX, mas também universais e eternos. Talvez tenha sido essa aura de estranheza em sua vida e obra que me inspirou a conhecê-los. Seja como for, o fato é que James Joyce sempre me intrigou, e seu livro Ulysses um desafio tão grande que um dia eu teria de vencer, fosse do jeito que fosse.

Porém, com tantos livros pela frente, Ulysses foi ficando cada vez mais para trás. O compromisso, entretanto, não foi esquecido, até que há três anos decidi me preparar para a leitura, começando primeiramente pelas outras obras do autor irlandês que antecipavam a chegada de Ulysses. Iniciei-me com Retrato do Artista quando Jovem, cujo personagem principal é Stephen Dedalus. Este, aliás, retorna aos holofotes na obra máxima de Joyce, dividindo as cenas com Leopold Bloom, o protagonista de Ulysses. Depois foi a vez de Dublinenses, livro de contos que traz um panorama da Dublin da época do escritor. É interessante lembrar que alguns personagens desse livro reaparecem em Ulysses.


Após essas incursões era chegada a hora de mergulhar em Ulysses, mas qual a melhor maneira de compreender a obra e me prender às mais de mil páginas do que estando lá, em Dublin, na Irlanda, no cenário onde ela se passa? Foi então que planejei a viagem em 2015 e embarquei para a Irlanda em 2016. O objetivo principal era conhecer a cidade e me iniciar na leitura de Ulysses, percorrendo as principais ruas e lugares por onde Leopold Bloom passa, e por tabela, James Joyce.

Confesso que ainda assim não foi fácil engatar a leitura. Alguns contratempos no início da minha estadia em Dublin desviaram minha atenção e concentração, que só se ajustaram depois de conhecer a Torre Martello, em Sandycove. O local, conhecido bem por Joyce, já que ele morou ali, é hoje um museu dedicado ao escritor e é o cenário da abertura da obra. Conhecer o lugar fez toda a diferença para entrar na história e entender trechos como esta pequena joia, que é pura poesia:

Sombras vegetavam silentes na paz da manhã flutuantes da escada ao mar para onde olhava. Na praia e mais além embranquecia o espelho d´água, pisado por pés lépidos e leves. Seio branco do mar turvo. Parelhas de pulsos, dois a dois. Mão tangendo as cordas de harpa fundindo-lhe os acordes geminados. Palavras pálidas do pélago aos pares rebrilhando na turva maré.

Pode parecer ser nexo, mas faz todo o sentido. E, a partir de então, a leitura engrenou e foi uma delícia passear com Bloom pelas ruas de Dublin.

Ulysses foi escrita entre 1914 e 1921, nas cidades de Trieste, Zurique e Paris, e publicada em 1922, exatamente em 2 de fevereiro, portanto há 95 anos.  E apesar de ter sido escrita fora da Irlanda, a obra traz um perfeito panorama da capital irlandesa na época de Joyce, com seus conflitos políticos e sociais, mostrando o modo de vida dos seus habitantes. Ali estão os pubs, as escolas, as igrejas, o teatro, enfim todos os lugares marcantes da cidade. Era visível a preocupação de Joyce em retratar a pobreza e a perda da identidade cultural irlandesa frente ao domínio britânico.

A obra foi Inspirada na Odisseia, de Homero, daí chamar-se Ulysses, o nome do personagem principal daquele épico grego. A história, dividida em 18 capítulos, cada um representando uma hora do dia, ou seja das 8 horas da manhã até às primeiras horas do dia seguinte, se passa em 16 de junho de 1904 e traz a trajetória de Leopold Bloom, judeu irlandês, de sua esposa Molly Bloom e de Stephen Dedalus, o personagem de Retrato do Artista quando Jovem.

É interessante que Joyce associa cada capítulo aos episódios da Odisseia, juntando ao estilo literário arte, cor, símbolo, técnica e órgão do corpo humano. O dia envolve acontecimentos banais, pensamentos e reflexões, diálogos, digressões e fluxos de consciência. Na mistura de linguagens, o escritor trouxe à luz novas técnicas e possibilidades literárias, invertendo palavras, misturando frases e inovando a escrita.

E por que 16 de junho de 1904? É que esta foi a data do primeiro encontro de Joyce com Nora Barnacle, que veio a ser sua esposa. E o dia ficou imortalizado, não só pelo livro, mas também pelos irlandeses, que o batizaram de Bloomsday, criando assim a famosa festa em homenagem ao livro e ao personagem principal. Nesse dia, lugares como a Torre Martello, em Sandycove, o pub de Davy Byrne, e a 7 Eccles Street, endereço do personagem, são especialmente visitados e festejados.

Para mim ler Ulysses foi uma experiência incrível, que consumiu praticamente boa parte do ano 2016. Não o terminei em Dublin, pois minha estadia lá foi curta. Terminei no Brasil, em São Paulo, no final do ano, mas com a mente em Dublin, na Irlanda, onde caminhei horas e horas pelo trajeto de Bloom e conheci muitos dos lugares que são citados no livro.

Não vou dizer que Ulysses é uma leitura fácil. Não é. Patinei em muitas partes e fiquei “a ver navios” em outras, por isso demorei tanto para terminar. Mas dessa leitura lenta surgiu uma empatia grande, que criou laços. Era agradável ter a companhia do livro em meus dias, era como se estivesse caminhando com ele e, apesar das dificuldades em algumas partes, a experiência foi enriquecedora e certamente transformou minha vida de leitora. É, acho que posso dizer que Ulysses é um dos livros da minha vida. E que sinto falta dele nos meus dias.