quarta-feira, 12 de junho de 2013

História de um amor

Na literatura universal, várias são as histórias de amor, fictícias na sua maioria, muitas delas nem sempre acabam bem, como Romeu e Julieta, Tristão e Isolda e Orfeu e Eurídice, entre outras. Em todas estas, contudo, a beleza do amor jovem é retratado em todas as suas nuances, nos encantando sempre, e poderiam perdurar por muito tempo, se a tragédia não acometesse tão cedo. Será? Nunca saberemos, de fato, apenas podemos imaginar.

Recentemente descobri outra história de amor na literatura, com um final igualmente triste, que me comoveu imensamente. Só que com duas diferenças básicas: um amor que chegou à velhice e, mais impressionante, real.
 
O filósofo austríaco André Gorz e sua esposa, a inglesa Dorine, viveram uma grande história de amor e companheirismo que começou em 1947 e durou quase 60 anos. Juntos vivenciaram a pobreza, os primeiros sucessos literários, as mudanças socioeconômicas do mundo, o surgimento da política de meio ambiente e a doença degenerativa que se manifestou em Dorine. Por essa razão, Gorz abandonou tudo e passou a viver recluso com a mulher no início da década de 1990, até a morte deles, por duplo suicídio, em setembro de 2007.

Considerado como um pensador da ecologia política e do anticapitalismo, André Gorz foi um dos fundadores da revista Le Nouvel Observateur, e é autor de livros traduzidos para o português, como Misérias do presente, riqueza do possível, Crítica da divisão do trabalho e O imaterial: conhecimento, valor e capital.
 
A história de amor deles é contada em uma carta, escrita por André um ano antes do suicídio, e encontrada junto aos corpos no quarto do casal. Carta a D – História de um amor foi publicada no Brasil pela Cosac Naify em 2008, com uma tiragem de 5.000 exemplares que se esgotou rapidamente na época.

Não se trata apenas de um romance açucarado, sobre a possível perda do companheiro, mas de uma reflexão sobre o amor, sobre os caminhos que nos levam a ele e sobre o final da vida, no caso do autor e de sua mulher. E não pude aqui deixar de fazer um paralelo com o filme francês Amor, escrito e dirigido por Michael Haneke, premiado com o Oscar de melhor filme em língua estrangeira de 2012.

No filme, a narrativa se foca em um casal idoso aposentado, Anne e Georges. O drama se desenvolve a partir de uma operação da carótida a que Anne é submetida. Alguma coisa dá errado e ela acaba com um lado do corpo paralisado. Lentamente Anne vai se degenerando e Georges se isola com a mulher tentando de todas as formas cuidar dela. O final é presumível, embora terrível.
Apesar de semelhantes, as histórias se divergem em alguns aspectos, pois o filme é bastante duro, sem complacência, mostrando a velhice e o fim da vida de maneira cruel, sem concessões. O livro-carta de Gorz é mais uma tentativa de registrar, ou melhor, de explicar à mulher o seu grande amor por ela. O início é bastante poético e vale a pena ser citado, como um dos melhores começos de um livro...,
 
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e se mantém bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu te amo mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
... mas no percurso, a carta vai se transformando numa expiação do filósofo, narrando o começo de tudo, quando conheceu Dorine, seus primeiros encontros, o namoro, a vida em comum, seus isolamentos quando escrevia, a influência da mulher em seus escritos, o sentido que ela buscava dar na vida dele, seus valores, suas crenças, sua consciência sobre o meio ambiente, a dor com a descoberta da doença, os tratamentos e a vida reclusa em uma casa de campo, em contato com a natureza.
Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que nos tornássemos o que somos; um pelo outro. Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos.
Gorz relata que Dorine era uma mulher fascinante que crescia na adversidade, enquanto ele ficava paralisado. Ativa e incansável, ela foi diagnosticada, entre 1973/1974, com aracnoidite, uma meningite química, uma inflamação da aracnoide, uma das membranas que recobrem o cérebro e a medula espinhal. Essa inflamação foi causada por resíduos de um contraste para radiografia da coluna, aplicado em Dorine quando ela precisou se submeter a uma cirurgia de hérnia de disco oito anos antes.
A substância contrastante utilizada na época foi o lipiodol, feita de óleo de papoula, que deveria ter sido eliminado do corpo, o que não aconteceu. Dorine passou então a sentir terríveis dores de cabeça e no corpo, que foram incapacitando-a, pouco a pouco, para as mais simples atividades. Os remédios causavam efeitos colaterais e cirurgia era uma solução delicada, razão pela qual Dorine resolveu abandonar os medicamentos e passou a praticar ioga.
Ao mesmo tempo, Gorz decide se aposentar e passa a cuidar de Dorine com aplicação, em uma casa de campo, cozinhando para ela alimentos saudáveis e desfrutando intensamente de sua companhia. No entanto, ele chega a desabafar na carta: “Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha em sua aflição.”
Talvez por isso a ideia do suicídio chegou mais forte. Tanto para Gorz quanto para Dorine seria terrível viverem um sem a companhia do outro. Era melhor que fossem juntos, esperando assim, em outra dimensão, reviverem o grande amor que ambos manifestavam:
À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier cantando: “o mundo está vazio, não quero mais viver”, e desperto. Eu vigio sua respiração, minha mão toca você. Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos.
É um final triste, como a maioria das histórias de amor. Esta, no entanto, é uma grande história de amor; como poucas... como muitos queriam viver.  

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