Na
literatura universal, várias são as histórias de amor, fictícias na sua
maioria, muitas delas nem sempre acabam bem, como Romeu e Julieta, Tristão e
Isolda e Orfeu e Eurídice, entre outras. Em
todas estas, contudo, a beleza do amor jovem é retratado em todas as suas
nuances, nos encantando sempre, e poderiam perdurar por muito tempo, se a
tragédia não acometesse tão cedo. Será? Nunca saberemos, de fato, apenas
podemos imaginar.
Recentemente
descobri outra história de amor na literatura, com um final igualmente triste,
que me comoveu imensamente. Só que com duas diferenças básicas: um amor que
chegou à velhice e, mais impressionante, real.
O filósofo
austríaco André Gorz e sua esposa, a inglesa Dorine, viveram uma grande
história de amor e companheirismo que começou em 1947 e durou quase 60 anos.
Juntos vivenciaram a pobreza, os primeiros sucessos literários, as mudanças socioeconômicas
do mundo, o surgimento da política de meio ambiente e a doença degenerativa que
se manifestou em Dorine. Por essa razão, Gorz abandonou tudo e passou a viver
recluso com a mulher no início da década de 1990, até a morte deles, por duplo
suicídio, em setembro de 2007.
Considerado como um pensador da ecologia política e do anticapitalismo, André Gorz foi um dos fundadores da revista Le Nouvel Observateur, e é autor de livros traduzidos para o português, como Misérias do presente, riqueza do possível, Crítica da divisão do trabalho e O imaterial: conhecimento, valor e capital.
A história de
amor deles é contada em uma carta, escrita por André um ano antes do suicídio,
e encontrada junto aos corpos no quarto do casal. Carta a D – História de um amor foi publicada no Brasil pela Cosac
Naify em 2008, com uma tiragem de 5.000 exemplares que se esgotou rapidamente
na época.
Não se trata apenas de um romance açucarado, sobre a possível perda do companheiro, mas de uma reflexão sobre o amor, sobre os caminhos que nos levam a ele e sobre o final da vida, no caso do autor e de sua mulher. E não pude aqui deixar de fazer um paralelo com o filme francês Amor, escrito e dirigido por Michael Haneke, premiado com o Oscar de melhor filme em língua estrangeira de 2012.
No filme, a
narrativa se foca em um casal idoso aposentado, Anne e Georges. O drama se
desenvolve a partir de uma operação da carótida a que Anne é submetida. Alguma
coisa dá errado e ela acaba com um lado do corpo paralisado. Lentamente Anne
vai se degenerando e Georges se isola com a mulher tentando de todas as formas
cuidar dela. O final é presumível, embora terrível.
Apesar de semelhantes,
as histórias se divergem em alguns aspectos, pois o filme é bastante duro, sem
complacência, mostrando a velhice e o fim da vida de maneira cruel, sem
concessões. O livro-carta de Gorz é mais uma tentativa de registrar, ou melhor,
de explicar à mulher o seu grande amor por ela. O início é bastante poético e
vale a pena ser citado, como um dos melhores começos de um livro...,
Você está para fazer oitenta e dois
anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e
se mantém bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos
juntos, e eu te amo mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito
um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de
preencher.
... mas no
percurso, a carta vai se transformando numa expiação do filósofo, narrando o
começo de tudo, quando conheceu Dorine, seus primeiros encontros, o namoro, a
vida em comum, seus isolamentos quando escrevia, a influência da mulher em seus
escritos, o sentido que ela buscava dar na vida dele, seus valores, suas
crenças, sua consciência sobre o meio ambiente, a dor com a descoberta da
doença, os tratamentos e a vida reclusa em uma casa de campo, em contato com a
natureza.
Preciso reconstituir a história do
nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que
nos tornássemos o que somos; um pelo outro. Eu lhe escrevo para entender o que
vivi, o que vivemos juntos.
Gorz relata
que Dorine era uma mulher fascinante que crescia na adversidade, enquanto ele
ficava paralisado. Ativa e incansável, ela foi diagnosticada, entre 1973/1974,
com aracnoidite, uma meningite química, uma inflamação da aracnoide, uma das
membranas que recobrem o cérebro e a medula espinhal. Essa inflamação foi
causada por resíduos de um contraste para radiografia da coluna, aplicado em
Dorine quando ela precisou se submeter a uma cirurgia de hérnia de disco oito
anos antes.
A substância
contrastante utilizada na época foi o lipiodol, feita de óleo de papoula, que
deveria ter sido eliminado do corpo, o que não aconteceu. Dorine passou então a
sentir terríveis dores de cabeça e no corpo, que foram incapacitando-a, pouco a
pouco, para as mais simples atividades. Os remédios causavam efeitos colaterais
e cirurgia era uma solução delicada, razão pela qual Dorine resolveu abandonar
os medicamentos e passou a praticar ioga.
Ao mesmo
tempo, Gorz decide se aposentar e passa a cuidar de Dorine com aplicação, em
uma casa de campo, cozinhando para ela alimentos saudáveis e desfrutando
intensamente de sua companhia. No entanto, ele chega a desabafar na carta: “Eu
queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha em sua
aflição.”
Talvez por
isso a ideia do suicídio chegou mais forte. Tanto para Gorz quanto para Dorine
seria terrível viverem um sem a companhia do outro. Era melhor que fossem
juntos, esperando assim, em outra dimensão, reviverem o grande amor que ambos manifestavam:
À noite eu vejo, às vezes, a silhueta
de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um
carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero
assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas. Ouço a
voz de Kathleen Ferrier cantando: “o mundo está vazio, não quero mais viver”, e
desperto. Eu vigio sua respiração, minha mão toca você. Nós desejaríamos não
sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja,
que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos.
É um final
triste, como a maioria das histórias de amor. Esta, no entanto, é uma grande
história de amor; como poucas... como muitos queriam viver.
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