terça-feira, 4 de outubro de 2011

Baleia e os animais na literatura

Homens e animais convivem juntos desde os primórdios da criação. Uma convivência nem sempre pacífica, respeitosa e justa, com o predomínio do primeiro sobre o segundo, mas que, felizmente, vem sendo questionada nas últimas décadas. Afinal, os animais fazem parte da natureza, são nossos aliados e parceiros e, suas existências trazem inúmeros benefícios ao ambiente e às nossas vidas.

Na literatura, esses companheiros tem presença forte e decidida, ora como protagonistas, ora como personagens secundários, povoando nosso imaginário de figuras e imagens inesquecíveis. Dentre estes, o dócil e valente elefante Salomão (Solimon) de A Viagem do Elefante, de José Saramago ou o bonito e discreto cão – e herdeiro da fortuna do dono – Quincas Borba, do livro de mesmo nome do escritor Machado de Assis.

Ou ainda aqueles com características antropomórficas, como os animais da fazenda de A Revolução dos Bichos, de George Orwell, criados pelo autor como uma crítica ao regime soviético. Ou ainda os personagens da graphic novel de Art Spiegelman, Maus, que conta a história dos seus pais, que eram judeus, no Holocausto. Os humanos são representados por animais como ratos, porcos, coelhos, gatos, sapos, cachorros, renas, traças e peixes.

Mas na literatura de ficção, dentre todos os personagens dos livros que li, nenhum chamou tanto a minha atenção - e emocionou – quanto a cachorra Baleia, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Narrado em terceira pessoa, o romance é o último do autor, e conta a história de uma família de retirantes nordestinos que foge da seca: Fabiano, sua mulher sinhá Vitória, o filho mais velho, o filho mais novo, a cachorra Baleia e o papagaio, morto já no início da narrativa.

Baleia (na ilustração ao lado de Aldemir Martins) era um animal pequeno e sensível, mas forte, esperto e corajoso, que ajudava Fabiano a juntar o pouco gado que a família tinha. Nadava muito bem, acompanhando sempre os meninos em suas brincadeiras em lagoas, parecendo “uma pequena baleia-jubarte em época de acasalamento nas águas mornas de abrolhos”.

Sua presença é tão marcante na história que Graciliano lhe dedicou um capítulo inteiro, entre os 13 existentes, começando por “Mudança” e terminando com “Fuga”. O capítulo de Baleia é o nono, mas foi o primeiro que Graciliano escreveu, pois pretendia, na época, escrever um pequeno conto sobre a morte do animal. Com o tempo foi acrescentando outros até formar o livro.

É o capítulo mais emocionante da obra. Baleia estava doente, com hidrofobia, sem pelo, apenas pele e osso e o corpo coberto de chagas. Fabiano, então, decide matá-la, para tristeza dos filhos, como se pode ver nessa passagem: "Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam.”

Emprestando sentimentos à cachorra, de uma forma humana, o autor mostra Baleia em seus devaneios, sentindo raiva de Fabiano por causa do tiro, mas ao mesmo tempo sonhando com preás gostosos para comer e depois voltando à realidade que se desenhava à sua frente:

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto, esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladeando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

Prefiro não avançar mais nas citações, porque seria como tirar o prazer e a beleza dessa leitura para quem ainda não a fez, ou até mesmo para quem já fez, como eu, há um bom tempo. E, mesmo assim, sem esquecer da emoção experimentada nesse e em todos os capítulos de um livro que, embora trate de um tema tão árido e triste, consegue extrair poesia e beleza humana em um animal.

4 comentários:

  1. É uma passagem bem tocante do livro de Graciliano, até os que não tem alma como eu se sensibilizam.
    Um Abraço


    http://paulosergioembuscadotempoperdido.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  2. Do jeito que eu me comovo com animais...(chorei como LOUCA em Marley & Eu), nem imagino como me sentiria lendo essa história e imaginando tudo o que a cadelinha passava ao lado dos donos. Na verdade, acho que só quem já teve um animalzinho, sabe como ele agrega valores dentro de uma família...só tive um cachorrinho até hoje, e ele já é um senhor e ainda está com a gente, mas chegada dele trouxe tantas mudanças, que ele acabou virando membro da família, facinho :)

    E eu preciso ler esse livro, ponto.
    "Escapei" dele na época da escola e na faculdade, mas agora acho que seria uma leitura ótima!

    Grande beijo!
    PS: e fiquei emocionada com a passagem...haha! Conseguiu me tocar, de verdade!

    ResponderExcluir
  3. Oi Cecilia, adorei seu post, o tema perfeito. Existem personagens perfeitos na literatura que nos emocionam muito, mas a Baleia me faz chorar até mesmo sem ler o livro, só em imaginar.
    Os cães de Saramago me deixam emocionadíssima, e são muitos, mas alguns inesquecíveis, como o Achado ( A Caverna ) e o que a Mulher o Médico encontrou na rua em Ensaio sobre a Cegueira. Celina, o cão Achado É O Personagem!!! ele é pura emoção!!!
    Tem existe o Flesh de Virginia Wollf, e a barata do livro A Metamorfose? eita é muito bicho por ai fazendo sucesso.
    Bju

    ResponderExcluir
  4. Me fez lembrar de um post meu de um tempo atrás no qual eu faço uma brincaderia com a Baleia e a barata do Kafka =)
    http://mundopos.blogspot.com/2010/01/metamorfose-de-baleia.html
    abs!

    ResponderExcluir