Livros
sobre ilhas desertas costumam fascinar e suscitar muito a nossa imaginação. O
que levaríamos e o que faríamos se para lá fôssemos costumam ser os
questionamentos mais frequentes. A aventura parece ser divertida, mas pode
também trazer perigos e um certo distanciamento da dita civilização, além de
uma possível perda da inocência, como acontece em O senhor das moscas, primeiro
romance do escritor inglês William Golding, vencedor do Prêmio Nobel de
Literatura em 1983.
O
livro foi publicado em 1954 e, embora conte com mais de 50 anos, continua fascinando
e ensejando inúmeras interpretações em seus leitores. À primeira vista pode
parecer uma história infanto-juvenil, por tratar de um grupo de crianças presas
em uma ilha deserta, mas sua trama extrapola a simples aventura para se
transformar em um clássico da literatura do pós-guerra.
A
história começa quando um grupo de meninos ingleses de um colégio interno se
encontram perdidos em uma ilha, depois da queda do avião que as transportava para
longe da guerra. Os primeiros a aparecer são Ralf, um garoto esperto que possui
um carisma fora do comum, e Porquinho, um menino gordo, asmático e míope, mas
dotado de inteligência extraordinária. Juntos, eles encontram uma concha que
será utilizada para reunir os outros meninos que estão na ilha e se tornará uma
espécie de símbolo da civilização que pretendem implantar no local, sem
adultos, sem as obrigações destes.
A
eles juntam-se Jack, um garoto que sabe explorar sua força física e domina um
grupo de meninos que formavam um coral antes da queda, e Simon, um menino
místico, que tem visões, mas que ao meu ver tem coragem suficiente para
desvendar o grande mistérios da ilha, representado pelo “bicho” que todos
sentem, mas não veem. E é com a figura desse “bicho”, que Jack tenta impor sua
força e seu domínio sobre os meninos, principalmente entre os pequenos, os que
mais são suscetiveis ao medo do desconhecido.
A
escrita de Golding é fluida e a leitura transcorre agradavelmente, de forma que
o leitor é transportado para o interior daquela ilha até certo ponto
paradisíaca, repleta de frutos e florestas, com infinidade de porcos que, aos
poucos, vão sendo caçados, mortos e transformados em alimento pelos meninos
comandados por Jack.
No
início tudo é harmonia e os garotos se organizam sob o comando de Ralf, eleito
democraticamente pelos meninos para ser o chefe, a despeito dos ciúmes e do
antagonismo de Jack. Este, a princípio, aceita, mas aos poucos vai revelando
sua natureza selvagem, rebelando-se e rompendo com a “sociedade”, formando seu
próprio grupo guiado pela força.
O
livro traz muitas simbologias, com Ralf representando a democracia disseminada
pelo seu carisma. Jack, ao contrário, denota o facismo e o autoritarismo, uma
vez que quer dominar todos na ilha; já Porquinho é o lado racional, a
inteligência, ligada à ciência, muitas vezes impopular, mas sempre buscada no
fim. Por isso mesmo, é o menino que sofre o bullying, antagonizado e
discriminado pela maioria, principalmente por Jack.
O
título do livro está relacionado com a natureza do mal. Ele é citado em uma
passagem quando, depois de matarem uma porca, os meninos deixam sua cabeça em
uma clareira para ser oferecida ao “bicho”, que pensam existir na ilha. Esta
fica rodeada de moscas e é vislumbrada por Simon, que passa a conversar com
ela, referindo-se a si mesma como “O senhor das moscas” (tradução literal do
nome hebraico Ba´alzevuv, ou Beelzebub em grego, um sinônimo para “diabo”.
Uma
das passagens mais incríveis e fortes do livro é a dança que acontece sempre
depois da caça. Jack e seus “caçadores” pintam o rosto e o corpo e, depois de
alimentados, fazem uma roda onde dançam encenando a caçada em si. É um ritual
selvagem, tribal, onde se encaixa perfeitamente aquela expressão “pão e circo”,
alimento e diversão. Deem ao povo isto e tudo estará bem.
É importante ressaltar que o acontece antes dos meninos caírem na ilha ou depois dela, pouco importa. A história se resume ao que se passa na ilha. Mas a tentativa destes, sobretudo de Ralf, é manter acesa uma fogueira, cuja fumaça se eleve aos céus para que possa ser vista por possíveis navios ou aviões que passem pelo local, de forma que possam ser salvos.
Já quase no final do livro não pude deixar de lembrar de outra obra, esta A revolução dos bichos, de George Orwell. Em dado momento, Ralf se vê praticamente sozinho nesta tentativa de manter a fogueira acesa e é obrigado a fugir da força do bando de Jack. A cena remeteu-me a Bola de Neve, personagem de A revolução dos bichos que, junto com outro, Napoleão, empreendeu a revolta dos animais contra os humanos, levando-os ao poder. Napoleão, no entanto, é seduzido pela força e escorraça Bola de Neve, que é obrigado a fugir. Vi a mesma cena acontecer em O senhor das moscas.
O
livro teve duas adaptações para o cinema. Uma em preto e branco, lançada em
1963, bastante fiel ao romance. A outra, lançada em 1990, tem um visual mais
atualizado, mas com partes divergentes do original. A conferir.
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