No Brasil, a
revista é publicada pelo selo Alfaguarra, da editora Objetiva, e sua edição nº
8, em português, é toda dedicada ao tema Trabalho.
Achei bastante oportuno lê-la esta semana, quando comemoramos do dia do “lavoro”.
São 15
textos, entre memória, ensaios ou ficção, que retratam cenários como o Rio de
Janeiro, Londres, Pequim, Jafna, Dublin, entre outros, além de um ensaio
fotográfico do diretor de cinema Walter Carvalho. Dos escritores, cinco são
brasileiros, um argentino, sete originalmente publicados na Granta inglesa e
dois traduzidos do número de estreia da versão italiana, também dedicado ao
trabalho.
A edição tem
início com um texto bem humorado, informativo e reflexivo do escritor Salman
Rushdie sobre o significado da preguiça, um dos sete pecados capitais que,
segundo ele, até hoje não foi abordada com muita consideração pela literatura.
Em seu texto, Rushdie lembra de personagens famosos, rodeados pela sombra da
preguiça, como Hamlet, o procrastinador; Bartleby, que prefere não fazer nada;
e Oblómov, o inerte. De certa forma, temos um pouco deles dentro de nós.
Um dos
textos que achei bem interessante foi o da escritora Doris Lessing, intitulado “A
morte de uma poltrona”. Nele, a autora conta que uma senhora participou de um leilão
onde pretendia arrematar uma poltrona e um sofá. Obtidos a um preço irrisório,
os móveis foram levados para seu chalé e ficaram lá por um bom tempo, o único
senão foi a poltrona, que era demasiado grande e pesada, mas ainda assim
perfeita para o que a senhora pretendia, além do mais era uma antiguidade, com
mais de 40 anos de fabricação.
Vendido o
chalé, os móveis tiveram de ser transportados para outra residência, e depois
outra, até que a poltrona tornou-se um estorvo. Calculando que seria demasiado
difícil desfazer-se dela, ou melhor, de encontrar quem a retirasse da casa,
devido ao seu tamanho e peso, resolveu trucidá-la e, depois, juntar os pedaços para
jogá-los no lixo.
Nessa
empreitada, a senhora descobriu, a cada golpe que dava na poltrona e no seu
tecido, uma verdadeira obra de arte e acabamento, feita por mãos artesãs, como destaco
no trecho abaixo:
Sob a seda rosa havia um forro de
linho puro, de tom creme, que me fez pensar no linho diáfano que os egípcios da
Antiguidade vestiam. Era rígido e não se esticava, nem mesmo nas curvas.
Debaixo dele havia o calicô leve, e depois o enchimento que consistia em três
camadas: a de cima era fina, como uma lanugem, a outra era mais áspera, e a
última era um acolchoado de algodão. Tirei tudo isso do espaldar da poltrona e
descobri a madeira cor de chá ralo. As tiras largas que seguravam o enchimento
no lugar eram de fitas brancas e duras que se cruzavam como no entrelaçamento
de uma cesta, as pontas presas à madeira com pregos minúsculos, em várias
fileiras, formando o padrão que contornava o encosto da poltrona. Meu martelo
de unha não conseguia nem chegar perto daqueles pregos. Cada uma das camadas do
enchimento tinha sido pregada a essa rede com enormes pontos corridos que
também formava um padrão de fileiras em V. Imaginei o artesão que tinha feito a
poltrona se ajoelhando ao lado dela, em um banquinho, com sua agulha curva de
aço, fazendo aquele padrão em V que ninguém jamais veria, dando marteladinhas
naqueles preguinhos perfeitos... mas não era eu quem as via e
pensava nele? Ele já estava morto havia muito tempo, mas suas fileiras de
pregos ainda reluziam feito prata, e os fios da costura cintilavam à luz de
minhas janelas grandes.
Lembrei-me
de imediato de uma reportagem que fiz no Lar e Escola São Francisco, Centro de
Reabilitação que mantém convênio técnico-científico com a Universidade Federal
de São Paulo. O objetivo é reabilitar física e psicologicamente pacientes com
incapacidades físicas.
No local, há
uma oficina ortopédica, onde são confeccionadas órteses (aparelhos que auxiliam
na função do membro, como um colete para o pescoço, região lombar, dedo, punho,
braço todo, tornozelo, pé, perna) e próteses e adaptações de cadeiras de rodas.
Ali, os funcionários são treinados e capacitados para exercer a função de
órtese e prótese, um ofício que era passado de pai para filho, que começavam como aprendizes. Hoje em dia, com os avanços da tecnologia, essas profissões
estão cada vez mais escassas.
Embora sejam
trabalhos distintos, o do artesão lembrado no texto e o ofício de órtese e
prótese, não pude deixar de fazer um relação, porque, a bem da verdade, são
trabalhos que exigem perícia, técnica, atenção, dedicação. E quase em extinção.
O bom de uma
história, de um texto lido, é a analogia que fazemos com nossas próprias
experiências. Na narrativa sobre o fim da poltrona, lembrei também de que,
quando mudei de casa no final do ano passado, precisei, igualmente, me desfazer
de uma poltrona-cama enorme e espaçosa que havia em meu quarto, embora ainda estivesse em bom estado de conservação. Só que, além de grande,
era extremamente pesada e tive muita dificuldade em me desfazer dela, porque
para tirá-la de casa era necessário descê-la por uma escada e nem uma entidade
filantrópica, para quem liguei, quis levá-la. Por fim, um carroceiro se dispôs
a fazê-lo e levou a poltrona que, tristemente, vi no final do dia ser queimada
na praça que fica em frente à casa onde morava. Nem o carroceiro a quis.
Será que se
eu tivesse feito como a senhora do texto de Doris Lessing, destruído eu mesma a
poltrona, também não teria a bela surpresa e visto a beleza do trabalho do
artesão sobre ela? Quem sabe?
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