Borges, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Isabel Allende,
Roberto Bolaño, Ernesto Sabato, Carlos Fuentes e, claro, Machado de Assis, João
Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Jorge Amado, entre outros.
Para o nosso conhecimento e deleite, suas vastas obras estão ao nosso alcance,
bastando somente que nos aventuremos por elas.
Existem, porém, outros autores que, por não terem seus livros
– ou pouco deles – traduzidos para o português, embora apresentem uma
trajetória considerável em seus países de origem, passam despercebidos pelos
brasileiros. Foi o caso do chileno Alejandro Zambra, cujo belíssimo Bonsai foi finalmente publicado no
Brasil pela Cosac Naify, conquistando leitores.
Depois de conhecer e me encantar com Zambra, minhas atenções
voltaram-se para outro autor chileno, que teve uma de suas obras publicada
também pela Cosac Naify: Hernán Rivera Letelier, com seu tocante A contadora de filmes, um livro de pouco
mais 100 páginas que fala sobre a importância da imaginação e da ficção na vida
das pessoas, em especial das crianças.
O projeto gráfico é uma atração à parte: magnífico, com
trechos impressos em um retângulo claro em meio ao negrume da página,
semelhante a uma tela de cinema projetada em uma sala escura.
Quanto ao enredo, o livro resgata um tempo em que o poder da
palavra era suficiente para conhecer uma história, sem precisar vê-la, com os
próprios olhos. E vai avançando com a chegada da modernidade e das mudanças no
estilo de vida das pessoas, deixando marcas sentidas naqueles que não
acompanham as transformações do mundo.
A narrativa é simples em meio a um cenário árido: o povoado
salitreiro do deserto do Atacama, região norte do Chile. Ali, no final da
década de 1950, vive uma família pobre e apaixonada por cinema, que aos
domingos vai à única sala existente no local. Quando o patriarca sofre um
acidente e fica impossibilitado de trabalhar, a situação financeira deles é
bastante afetada. A mãe não aguenta a situação, vai embora, deixando marido e
cinco filhos.
Para aliviar as mazelas, o cinema é a válvula de escape
necessária, mas com a renda reduzida, só um dos integrantes da família poderá
assistir aos filmes, tendo a incumbência de, na volta, contar aos demais a
história. Nessa tarefa, é a filha mais nova, Maria Margarita, a narradora e
protagonista do livro, quem se sai melhor:
Cheguei em casa com os
olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio a
xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem
nada, comecei a minha narração.
Foi então que alguma
coisa se apoderou de mim.
Enquanto contava o
filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me
desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela
tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas
mulheres leprosas que Jesus curou.
Fui o mesmíssimo Jesus.
Eu não estava contando
o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme.
Meu pai e meus irmãos
me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.
Com boa memória, criatividade e desenvoltura, Maria Margarita
torna-se assim “a contadora de filmes” oficial da família e, mais tarde, do
povoado, adotando até um novo nome – Fada Docine:
Sem ter pensado nisso,
para eles eu tinha me transformado numa fazedora de ilusões. Numa espécie de
fada, como dizia a vizinha. Minhas narrações de filmes os tiravam daquele
amargo nada que era o deserto, e mesmo que fosse por um instante os
transportava a mundos maravilhosos, cheios de amores, sonhos e aventuras. Em
vez de vê-los projetados numa tela, em minhas narrações cada um podia imaginar
esses mundos ao seu bel prazer.
Porém, à medida que o tempo avança, novos costumes se fazem
presentes, a família se transforma, membros partem, outros ficam e tem pouca
sorte. Em meio a tudo isso, Maria Margarita não se queixa, não esmorece; aceita
sua sina, prossegue com seus sonhos, sempre, até o fim. Talvez porque a vida é
um sonho e o sonho é um filme:
Uma vez li uma frase –
com certeza de algum autor famoso – que dizia algo assim como a vida está feita
da mesma matéria dos sonhos. Eu digo que a vida pode perfeitamente estar feita
da mesma matéria dos filmes.
Contar um filme é como
contar um sonho.
Contar a vida é como
contar um sonho ou contar um filme.
Sobre Letelier vale destacar que ele é natural de Algorta e
já publicou mais de dez livros. Este, A
contadora de filmes, está sendo adaptado para o cinema pelas mãos do
cineasta brasileiro Walter Salles. É aguardar pra ver, enquanto isso, leia o
livro.
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