Caos urbano, luzes de neon, balbúrdia; camelôs gritando,
correndo, se esvaindo..., faróis, anúncios e classificados, receitas e
cardápios, listas de livros e de afazeres; seguranças, polícia, meninos que
perambulam, mendigos, pedintes; orações, religiosos e evangélicos; gritaria,
diálogos e monólogos; velhos, adultos, adolescentes, crianças; carrões,
executivos, operários; o amanhecer e o anoitecer; a cidade que não para...
Eis a face de São Paulo, principal centro financeiro
corporativo e mercantil da América do Sul; a cidade mais populosa do Brasil, do
continente americano e de todo o hemisfério sul. A megalópole que não para, que
conduz o país e que faz seus habitantes estarem em constante movimento, como
que a cavalgar por entre suas ruas, becos, praças e avenidas, num atordoamento
e encantamento sem fim.
Pelo menos é essa a impressão que a cidade passa e que é tão
bem retratada em eles eram muitos cavalos,
obra do escritor Luiz Ruffato, publicada em 2001 pela Boitempo Editorial. Um
livro ousado, diferente, visceral, que tem a cidade como personagem e pano de
fundo, na qual os habitantes têm suas histórias descritas – e inscritas –, em
pequenos flashes.
A narrativa é caótica e sem fim, como São Paulo,
constituída de 70 fragmentos que mostram diferentes faces da cidade, causando
calafrios, vertigens, confusão. Traz um dia nas vidas da capital paulista – mais precisamente 9 de maio de 2000 –, por
meio das histórias de gentes simples, sem origem; anônimos que tanto podem ser
eu quanto você, ou qualquer um que habita a megalópole. Não é à toa que a
epígrafe traz uma passagem do poema "Dos cavalos da Inconfidência", da poetisa Cecília Meireles, corroborando, assim, o
título do livro:
Eles
eram muitos cavalos, mas ninguém mais sabe os seus nomes, sua pelagem, sua
origem...
Para citar alguns fragmentos, em “A espera”, o rapaz inicia
preguiçosamente o seu dia, impelido pela entrevista de logo mais para um emprego
e que um bilhete de sua mãe, deixado na porta da geladeira, dizia para ele não
perder a hora. Em seu trajeto para chegar ao local, sente-se a confusão de uma
cidade indiferente a tudo e a todos:
... Toma
o ônibus até a estação Saúde do metrô, baldeia na Sé para a estação República.
Da escada-rolante emerge, o Edifício Itália funda-se nos seus ombros, a fumaça
de carros e caminhões tachos de acarajés cozinhas quibes pastéis, vozes
atropelam-se, amalgamam-se, aniquilam-se, em bancas revistas, jornais, livros
usados, pulseiras brincos colares gargantilhas anéis, lã em gorros ponches
blusas mantas xales, pontos de ônibus lotados, trombadinhas, engraxates,
carrinhos de pipoca, doces caseiros, vagabundos, espalhados caídos
arrastando-se bêbados mendigos meninos drogados aleijados.
Em “De branco”, um médico passa seu plantão
tranquilamente, até a chegada de uma emergência, um rapaz levou um tiro,
suscitando lembranças e uma decisão surpreendente:
–
Tarcísio... você lembra do assalto?, daquele assalto lá em casa? Pois então: um
era esse, cara... Um era esse! E eu não vou salvar ele não, cara, não vou
mesmo! Não vou mexer uma palha pra salvar ele... Ele quase fodeu a minha vida,
cara, quase fodeu... Eu não vou operar ele não, estão me ouvindo? Não vou operar
ele não! Se vocês quiserem, chamem outro, me denunciem pro CRM, façam o que
vocês quiserem, não estou nem aí, eu não estou nem aí, estão me entendendo?,
nem aí!
Já em “Táxi”, o motorista falante, sem dar sossego ao
passageiro, constata uma triste realidade:
Saí
de casa muito cedo, menino ainda. Desci do norte de pau-de-arara. Se o senhor
soubesse o que era aquilo... Um caminhão velho, lonado, umas tábuas
atravessadas na carroceria, servindo de assento, a matula no bornal, rapadura e
farinha, dias e dias de viagem, meu deus do céu! Mas posso reclamar não, São
Paulo, uma mãe pra mim. Logo que cheguei arrumei serviço, fui trabalhar de faxineiro
num autopeças em Santo André. Depois fui subindo de vida, porque aqui
antigamente era assim, quem gostasse de trabalhar tinha tudo, ao contrário de
hoje, que até dá pena, não tem emprego pra ninguém...
E em “Da última vez”, um homem sai de casa, vai para um
hotel no centro da cidade e começa a sentir a ausência da família. A linguagem
e a diagramação são um show à parte:
...instalei-me
num quarto, você se lembra?
sexta-feira
à noite, Hotel Amazonas, Ave-
nida
Vieira de Carvalho, lá embaixo, barulho
um restaurante
italiano,
outro,
comida rápida árabe,
carros,
ônibus,
lá embaixo,
nas ruas
transversais,
eu sabia
das prostitutas,
dos meninos fumando crack,
dos assaltantezinhos pé-de-chinelo, eu sabia da noite,
e deitei, mas não era alívio que sentia, nem
remorso,
era não sei o quê, saudade, talvez,...
Eles
eram muitos cavalos foi agraciado, em 2001, com os prêmios APCA –
Associação Paulista de Críticos de Arte, e Machado de Assis da Fundação
Biblioteca Nacional. Além do Brasil, o livro foi publicado na Itália, na
França, em Portugal e na Alemanha.
Luiz Ruffato nasceu em Cataguases, Minas Gerais, e se
formou em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Publicou
vários livros, entre eles a série Inferno
provisório (Mamma, son tanto Felice;
O mundo inimigo; Vista parcial da noite; e O livro das impossibilidades),
premiada pela APCA como melhor ficção em 2005.
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