A partir desta quinta-feira, dia 19, São Paulo vai exalar
literatura por todos os seus poros. Além dos habituais eventos que ocorrem na cidade
semanalmente, a capital paulistana abrigará, pela primeira vez, um festival
internacional de literatura de grande porte: o Paulicéia Literária, que acontecerá de 19 a 22 de setembro, na AASP
- Associação dos Advogados de São Paulo (rua Álvares Penteado, 151 - Centro).
O evento, uma iniciativa da AASP, faz parte da comemoração
dos 70 anos da entidade, e foi criado com a proposta de inserir um padrão de
excelência na agenda cultural da cidade. Serão 18 mesas, com 33 autores, sendo
23 brasileiros e dez estrangeiros que debaterão uma série de assuntos ligados à
literatura, Direito, ficção policial, cinema, poesia, entre outros temas.
Para esta primeira edição, o Pauliceia Literária homenageia a escritora, dramaturga e roteirista
Patrícia Melo. Autora de nove livros, traduzidos em 12 idiomas, quatro peças de
teatro e dois roteiros para cinema, Patrícia teve seu nome incluído, em 1999,
pela Time Magazine, entre os 50
líderes latino-americanos do novo milênio.
Ela participará da mesa de abertura do evento, que terá como
tema uma análise de sua obra, e de um debate sobre o processo de escrita. Entre
suas obras destacam-se Acqua Toffana,
O matador – vencedor do Prêmio Deux
Océans e Deutsch Krimi, Elogio da mentira,
Inferno – vencedor do Prêmio Jabuti, Valsa Negra, Mundo perdido e Jonas e o
copromanta.
Ainda não tinha lido nada da autora, até que me deparei com Ladrão de cadáveres, seu oitavo romance,
e me surpreendi bastante com sua escrita ágil e envolvente para contar uma
história que reúne ética e moral, com suas distorções e justificativas.
A trama se passa em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, onde o narrador-protagonista
do romance, um ex-supervisor de uma central de telemarketing em São Paulo,
passou a morar depois que foi demitido por ter agredido uma funcionária que
acabou se suicidando. Ali, ele passa a viver sem cobranças e grandes aspirações,
até que sua vida toma um rumo inesperado ao presenciar a queda de um avião no
rio Paraguai.
Ao se aproximar do aeroplano, para tentar auxiliar o piloto, o
narrador percebe que ele está morto. Ao seu lado, vê uma mochila e, dentro
dela, um pacote de cocaína. Ele deixa o corpo no local e leva a mochila, dando
início a uma série de desdobramentos que vai aflorar o pior lado que existe nas
pessoas. A princípio, o protagonista não sabe o que fazer, mas os
acontecimentos o vão moldando – e conduzindo – de tal forma que ele não
consegue mais escapar. A passagem a seguir é exemplar para justificar seus
atos:
... O que importava se
eu abandonara o cadáver no rio? Não matei ninguém, câmbio. Ainda que tivesse
arrancado o rapaz do avião e o carregado no lombo até a cidade, nada iria
mudar. Estaria morto do mesmo jeito. Todos vamos morrer um dia. Que importava
se eu tinha afanado a cocaína? Que atire a primeira pedra, câmbio. Todos nós
roubamos alguma coisa, em algum momento. Quase todos. Pelo menos uma vez. Ou
vamos roubar. O Brasil é cheio de gente escrota, essa é a verdade.
A trama envolve ainda a namorada, Sulamita, uma policial
honesta que é transferida para o necrotério local e também é testada em seu
lado “mau”; os pais do piloto morto, ricos e tradicionais, que vivem a angústia
de não encontrar o corpo do filho e, por isso, têm a esperança de que ele
esteja vivo; e uma família de índios, cujo pai apresenta os traficantes de
drogas ao protagonista. Pessoas diferentes, mas ligadas por um mesmo fio, como
em uma teia de aranha gigante que vai tecendo e enredando o destino de cada um.
Os conflitos de consciência do protagonista, ainda que
verdadeiros, não são o suficiente para afastá-lo do caminho traçado. Por isso,
ao ir ao encontro da família do piloto para dizer-lhes que ele está morto, uma
série de mal-entendidos o faz se empregar como motorista da casa. É
interessante ainda a semelhança da angústia dos pais do piloto com a história
do protagonista, que teve o pai desaparecido, sem saber se fora morto ou não. As
lembranças ao fato são recorrentes no livro e questionadas a todo o momento:
Pensei no quanto minha
própria mãe teria sido feliz se um dia alguém tivesse nos telefonado do
necrotério, se tivéssemos ido até lá, reconhecido o cadáver do meu pai, para
depois enterrá-lo e acabar com o assunto. É esse o significado da palavra enterrar.
Colocar ponto final. Enterrem os mortos e cuidem dos vivos, quem disse isso?
Enquanto não enterramos os mortos, os vivos ficam lá, sangrando. Acabam conosco
os mortos. Como a dona Lu. Eu havia notado que nos últimos dias, ela não se
importava mais em encontrar o filho vivo. O cadáver do filho já bastava. Estava
naquele ponto em que o cadáver era melhor que nada. Antes o cadáver. Era assim
mesmo que as coisas se davam. Eu sabia disso por experiência própria, há
momentos que até uma péssima notícia é bem-vinda. Achamos um braço. Um pedaço
do crânio. Achamos o assassino. A cova. Qualquer coisa serve.
Essa minha primeira incursão na obra de Patrícia Melo foi
bastante prazerosa, despertando a vontade de ler mais livros da autora. Acho
que o Paulicéia Literária será uma
excelente oportunidade de conhecer mais o seu trabalho e seu processo criativo.
Vale lembrar que no evento a escritora Lygia Fagundes Telles
também será homenageada em uma mesa literária, que contará com a presença de
Ana Maria Machado, Beatriz Bracher e Luiza Nagib Eluf. Mais do que merecida,
afinal, Lygia se formou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, sendo
uma das mulheres pioneiras na área jurídica. Uma bela lembrança.
Para saber mais sobre o Paulicéia
Literária e conferir a programação completa acesse http://www.pauliceialiteraria.com.br/
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