Quando eu
era criança adorava passear no centro de São Paulo com meus pais e irmã, fosse
para perambular pela feira hippie da Praça da República, fosse para assistir a
uma das muitas matinês nos cinemas da capital, ou quem sabe ainda para “vasculhar”
os magazines da cidade. E, sempre que possível, passávamos pelo Mappin,
tradicional loja de departamentos que comercializava móveis, eletrodomésticos,
roupas, discos, produtos de higiene e beleza, enfim, uma infinidade de
materiais para o dia a dia e o deleite dos consumidores.
A loja atuou
por 86 anos em São Paulo e foi uma das pioneiras no comércio varejista. Teve
falência decretada em 1999, quando suas atividades foram encerradas. O prédio
foi retomado para abrigar o Extra Mappin, mas logo abortado e, em seguida, foi
adquirido pelo grupo das Casas Bahia. O tradicional edifício ainda se encontra
na Praça Ramos de Azevedo, esquina com a Cel. Xavier de Toledo, bem no coração
comercial de São Paulo, mas não tem mais nada que lembre o charme e a
imponência daquele magazine que fez parte da história da cidade.
A lembrança
do Mappin e de outro edifício presente na minha infância e adolescência – o da
Congregação Mariana, no bairro do Pari, que hoje nem mais vestígios têm do
prédio, uma vez que este foi demolido para abrigar o campus da Universidade São
Francisco – me pegou de cheio ao deparar com a HQ O Edifício, de Will Eisner, um dos nomes mais importantes dos
quadrinhos no mundo.
Mestre na
arte de desenhar com leveza e sentimento, e de contar histórias do cotidiano
urbano, com realismo marcante, Eisner escreveu e desenhou O Edifício em 1987 como uma metáfora da vida, com suas histórias,
sua importância e seu declínio até a extinção. Esta constatação já aparece na
página de abertura da HQ, com o relato do próprio Eisner:
À medida que fui envelhecendo e
acumulando recordações, passei a me sensibilizar mais e mais com o
desaparecimento de pessoas e referências urbanas. Para mim, eram especialmente
perturbadoras as inexplicáveis demolições de prédios. Eu sentia como se, de
alguma forma, eles tivessem alma.
Agora, estou certo de que essas
estruturas marcadas por risos e manchadas de lágrimas são mais do que edifícios
inertes. É impossível pensar que, ao fazerem parte da vida, não tenham
absorvido as radiações provenientes da interação humana.
Eu me pergunto sobre o que resta
depois que um prédio é demolido.
O enredo
divide-se em quatro personagens, cujas histórias transitam em torno de um
edifício que, derrubado, se transforma em outro, mas cujas estruturas guardam as
marcas de outras épocas. Esses personagens, que nos são apresentados logo no início
como fantasmas diante do novo prédio, tiveram suas vidas e trajetórias pautadas
pelo edifício e sucumbiram com ele, de forma a estabelecer uma ligação forte
que as acompanhará até o final, até o ressurgimento do novo prédio e, com ele,
suas redenções.
A primeira,
e mais tocante história, é sobre Monroe Mensh, um cidadão novayorquino,
vendedor em uma loja de sapatos, que vive sozinho, sem se envolver com nada e
ninguém. Até que sua vida é transformada com a morte de um garoto em um assalto
em frente ao edifício, que poderia ter salvado. Dessa forma, ele abandona o
emprego e busca se redimir trabalhando em um órgão de amparo infantil
estabelecido no próprio prédio, tentando assim ajudar toda e qualquer criança
que necessite de auxílio.
Em seguida é
apresentada a história de Gilda Green, uma bela mulher que, quando jovem era
bastante assediada, mas acabou se apaixonando por um poeta, que não tinha onde
cair morto. Depois de formada e, cansada dessa vida, ela se casa com um
cirurgião-dentista e passa a levar uma vida confortável, mas sem deixar de
manter a antiga paixão. Assim, eles continuam se encontrando, todas as semanas,
em frente ao edifício.
O outro
personagem é Antonio Tonatti, um violinista que, por ser de família pobre, não
teve muita oportunidade de expandir o seu talento. Ele toca esplendidamente,
mas precisa ter uma ocupação para sobreviver, passando a tocar nas horas vagas,
em frente ao edifício.
Por fim
aparece P. J. Hammond, um milionário, cujo pai foi proprietário do edifício,
mas acabou por vendê-lo no decorrer da vida, aumentando suas posses e deixando
a presidência da empresa ao filho. Obcecado pelo local que marcou sua infância,
Hammond faz de tudo para reaver o prédio, nem que para isso tenha de usar
métodos nada ortodoxos ou até mesmo perder sua fortuna.
É impossível
não se emocionar ao final da leitura, ainda mais ao retomar as histórias e
atentar para os detalhes dos desenhos, cuja compreensão se torna maior. Sem
dúvida uma bela e tocante HQ do cotidiano urbano, que nos faz pensar na vida,
nas relações humanas e nas inúmeras histórias que uma cidade comporta.
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