quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O Edifício - e os meus edifícios

Quando eu era criança adorava passear no centro de São Paulo com meus pais e irmã, fosse para perambular pela feira hippie da Praça da República, fosse para assistir a uma das muitas matinês nos cinemas da capital, ou quem sabe ainda para “vasculhar” os magazines da cidade. E, sempre que possível, passávamos pelo Mappin, tradicional loja de departamentos que comercializava móveis, eletrodomésticos, roupas, discos, produtos de higiene e beleza, enfim, uma infinidade de materiais para o dia a dia e o deleite dos consumidores.
 
A loja atuou por 86 anos em São Paulo e foi uma das pioneiras no comércio varejista. Teve falência decretada em 1999, quando suas atividades foram encerradas. O prédio foi retomado para abrigar o Extra Mappin, mas logo abortado e, em seguida, foi adquirido pelo grupo das Casas Bahia. O tradicional edifício ainda se encontra na Praça Ramos de Azevedo, esquina com a Cel. Xavier de Toledo, bem no coração comercial de São Paulo, mas não tem mais nada que lembre o charme e a imponência daquele magazine que fez parte da história da cidade.
A lembrança do Mappin e de outro edifício presente na minha infância e adolescência – o da Congregação Mariana, no bairro do Pari, que hoje nem mais vestígios têm do prédio, uma vez que este foi demolido para abrigar o campus da Universidade São Francisco – me pegou de cheio ao deparar com a HQ O Edifício, de Will Eisner, um dos nomes mais importantes dos quadrinhos no mundo.
Mestre na arte de desenhar com leveza e sentimento, e de contar histórias do cotidiano urbano, com realismo marcante, Eisner escreveu e desenhou O Edifício em 1987 como uma metáfora da vida, com suas histórias, sua importância e seu declínio até a extinção. Esta constatação já aparece na página de abertura da HQ, com o relato do próprio Eisner:
À medida que fui envelhecendo e acumulando recordações, passei a me sensibilizar mais e mais com o desaparecimento de pessoas e referências urbanas. Para mim, eram especialmente perturbadoras as inexplicáveis demolições de prédios. Eu sentia como se, de alguma forma, eles tivessem alma.
Agora, estou certo de que essas estruturas marcadas por risos e manchadas de lágrimas são mais do que edifícios inertes. É impossível pensar que, ao fazerem parte da vida, não tenham absorvido as radiações provenientes da interação humana.
Eu me pergunto sobre o que resta depois que um prédio é demolido.
O enredo divide-se em quatro personagens, cujas histórias transitam em torno de um edifício que, derrubado, se transforma em outro, mas cujas estruturas guardam as marcas de outras épocas. Esses personagens, que nos são apresentados logo no início como fantasmas diante do novo prédio, tiveram suas vidas e trajetórias pautadas pelo edifício e sucumbiram com ele, de forma a estabelecer uma ligação forte que as acompanhará até o final, até o ressurgimento do novo prédio e, com ele, suas redenções.
A primeira, e mais tocante história, é sobre Monroe Mensh, um cidadão novayorquino, vendedor em uma loja de sapatos, que vive sozinho, sem se envolver com nada e ninguém. Até que sua vida é transformada com a morte de um garoto em um assalto em frente ao edifício, que poderia ter salvado. Dessa forma, ele abandona o emprego e busca se redimir trabalhando em um órgão de amparo infantil estabelecido no próprio prédio, tentando assim ajudar toda e qualquer criança que necessite de auxílio.
Em seguida é apresentada a história de Gilda Green, uma bela mulher que, quando jovem era bastante assediada, mas acabou se apaixonando por um poeta, que não tinha onde cair morto. Depois de formada e, cansada dessa vida, ela se casa com um cirurgião-dentista e passa a levar uma vida confortável, mas sem deixar de manter a antiga paixão. Assim, eles continuam se encontrando, todas as semanas, em frente ao edifício.
O outro personagem é Antonio Tonatti, um violinista que, por ser de família pobre, não teve muita oportunidade de expandir o seu talento. Ele toca esplendidamente, mas precisa ter uma ocupação para sobreviver, passando a tocar nas horas vagas, em frente ao edifício.
Por fim aparece P. J. Hammond, um milionário, cujo pai foi proprietário do edifício, mas acabou por vendê-lo no decorrer da vida, aumentando suas posses e deixando a presidência da empresa ao filho. Obcecado pelo local que marcou sua infância, Hammond faz de tudo para reaver o prédio, nem que para isso tenha de usar métodos nada ortodoxos ou até mesmo perder sua fortuna.
É impossível não se emocionar ao final da leitura, ainda mais ao retomar as histórias e atentar para os detalhes dos desenhos, cuja compreensão se torna maior. Sem dúvida uma bela e tocante HQ do cotidiano urbano, que nos faz pensar na vida, nas relações humanas e nas inúmeras histórias que uma cidade comporta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário