sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A malandragem paulistana, por João Antônio

Aos 460 anos, a cidade de São Paulo não para de crescer e de se transformar. Do pequeno povoado que surgiu em 25 de janeiro de 1554, com a construção de um colégio jesuíta, até os dias atuais em que ostenta a posição de principal centro financeiro, corporativo e mercantil da América do Sul, a cidade se metamorfoseou e se multiplicou, passando por períodos de romantismo, desenvolvimento e turbulências tão bem retratados na literatura brasileira. 

Para lembrar uma São Paulo antiga, da década de 1960, e seus personagens marginalizados, vale a pena ler Malagueta, Perus e Bacanaço, livro de contos de João Antônio, republicado pela Cosac Naify em 2004. Em sua estreia literária, o escritor paulistano foi criador do conto-reportagem no jornalismo brasileiro, dando vida a figuras como malandros, bêbados, prostitutas, cafetões, entre outros que habitam as periferias das grandes cidades.

O livro divide-se em três partes. A primeira intitula-se “Contos Gerais”, com três pequenos contos: Busca, Afinação da arte de chutar tampinhas e Fujie. A segunda é formada por dois contos reunidos sob o título “Caserna”: Retalhos de fome numa tarde de G.C e Natal na cafua. A terceira – e que se constitui no ponto alto da obra – chama-se “Sinuca” e traz quatro contos: Frio, Visita, Meninão do Caixote e Malagueta, Perus e Bacanaço, sendo estes dois últimos os contos maiores e mais representativos da obra.
 
Essa terceira parte traz, em sua epígrafe, uma homenagem a Boca Livre, um vagabundo da Lapa-de-Baixo, e à Carne Frita (Walfrido Rodrigues dos Santos), figura verídica, considerado o maior jogador da história de sinuca do Brasil, hoje com 84 anos:
 
À picardia, à lealdade
e – em especial – à beleza de estilo
de jogo
do
muito considerado mestre
CARNE FRITA,
professor de encabulação e desacato
e cobra de maior taco dos últimos anos,
consagro
com a devida humildade
estas histórias curtas.
 
O livro estava pronto em 1960, quando em agosto desse mesmo ano um incêndio pôs fim à casa de João Antônio, destruindo roupas, móveis, estrutura e, claro, o livro. Foi um choque para o escritor que guardava objetos e escritos desde os cinco anos de idade em seu quarto. Aliás, João Antonio dizia que não escrevia em outro lugar a não ser naquele local.
 
Como a vida é feita de adversidades e reviravoltas e, para sobreviver, precisamos nos adaptar a tudo, o escritor aprendeu a escrever em outro canto, chegando a afirmar que “qualquer boteco é lugar para escrever quando se carrega a gana de transmitir. Gana é um fato sério que dá convicção”. E ele passou então a escrever em pensões, bibliotecas e quartos mesquinhos de hotel, durante os intervalos do trabalho em escritórios e aos domingos, muitas vezes se esquivando de amigos, se enclausurando.
 
O resultado foi mais do que gratificante, pois o livro ganhou o prêmio Fábio Prado da União Brasileira de Escritores e dois Jabutis (Revelação de Autor e Melhor Livro de Contos do Ano) da Câmara Brasileira do Livro.
 
O conto que dá título ao livro – Malagueta, Perus e Bacanaço – acontece em uma noite, num bar de sinuca, onde três parceiros malandros se encontram, e é dividido em seis partes que destacam os nomes dos bairros por onde os personagens vão caminhar noite à dentro, em busca de oportunidades de fazer dinheiro: Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros e, terminando de volta à Lapa. E se tivesse que ter uma trilha sonora, ela teria como carro-chefe a música “Ronda”, de Paulo Vanzolini, cuja melodia e letra não saiam da minha cabeça durante a leitura.

No conto, Malagueta, o mais velho, que tem esse nome por causa da sua paixão por comidas apimentadas, busca dar retaguarda aos golpes praticados pelos parceiros. Bom na arte da sinuca, Malagueta é descrito dessa forma por João Antônio: “O velho olhando o cachorro. Engraçado - também ele era um virador. Um sofredor, um pé-de-chinelo, como o cachorro. Iguaizinhos...”.
 
Bacanaço é o malandro no seu auge, na idade mediana, que gosta de se vestir bem, daí seu apelido. Gingador, sabe ludibriar com sua fala e seus modos finos, apesar de ser tão pobre quando os outros. Para João Antonio, “Bacanaço sustentava o paletó no antebraço, seus sapatos brilhavam, engraxados que foram outra vez, e a mão direita, manicurada, viajava para cima e para baixo, levando e trazendo um cigarro americano...”.
 
Finalmente Perus, cujo nome representa o bairro onde mora, é o novato da turma. Talentoso na sinuca, é ele quem vai desafiar outros jogadores e tentar conseguir dinheiro fácil: “O menino Perus tem seu lugar de taco, confiança de alguns patrões de jogo caro, devido à habilidade que na sinuca logrou desenvolver nas difíceis bolas finas, colocadas em diagonal na mesa. O menino Perus mal e mal se aguenta – fugido do quartel, foge agora de duas polícias. A Polícia do Exército e a polícia dos vadios. Uma semana, muitas vezes, na Lapa. Nas bocas do inferno se defende, se arranja pelas ruas, trabalha nas conduções cheias, surrupia carteiras. Deixa ficar e fica uma semana. A mesma camisa, o mesmo sono, a fome de dias...”.
 
Há ainda que ressaltar o estilo de escrita de João Antônio, o da oralidade, criando assim uma espécie de regionalismo urbano, com linguagem, jeitos, códigos, gíria e sintaxe malandra, próprios das figuras marginalizadas nas grandes cidades. Confesso que no começo estranhei, mas ao avançar na leitura me apaixonei, principalmente por trechos como este:

Estavam os três quebrados, quebradinhos. Mas imaginavam marotagens, concluios, façanhas, brigas, fugas, prisões – retratos no jornal e todo o resto –, safadezas, tramoias; arregos bem arrumados com caguetes, trampolinagens, armações de jogos que lhes dariam um tufo de dinheiro; patrões caros aos quais fariam marmelo, traição; imaginavam jogos longínquos, lá pelos longes dos subúrbios, naquelas bocas do inferno nem sabidas pela polícia; principalmente imaginavam jogos caros, parceirinhos fáceis, que deixariam falidos, de pernas para o ar. E em pensamento funcionavam. E os três comendo as bolas, fintando, ganhando, beliscando, furtando, quebrando, entortando, mordendo, estraçalando...
 
Vale lembrar que Malagueta, Perus e Bacanaço foi adaptado para o cinema em 1977, com o título de O jogo da vida, sob a direção de Maurice Capovilla. A conferir.
 
João Antônio escreveu 16 livros, entre estes os premiados Leão-de-chácara, Dedo-duro, Abraçado ao meu rancor e Guardador.

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