sexta-feira, 14 de março de 2014

No Quarto de Despejo

“15 de julho de 1955. Aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.

(...)

Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me... Esperei até as 11 horas, um certo alguem. Ele não veio. Tomei um melhoral e deitei-me novamente. Quando despertei o astro rei deslisava no espaço. A minha filha Vera Eunice dizia: – Vai busca água mamãe!”

 

Já nas primeiras linhas de Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, livro publicado em 1960 pela Editora Francisco Alves, o impacto e a força da escrita de Carolina Maria de Jesus se fazem presentes. Da simplicidade da narração à utilização de palavras consideradas “pouco usuais” para uma favelada, a leitura cativa e prende a atenção do início ao fim. É impossível ficar indiferente e não se emocionar com a história, que há mais de 50 anos surpreendeu a sociedade não só no Brasil, mas no mundo afora.
 
Nascida em Sacramento (MG) há exatos 100 anos, Carolina Maria de Jesus deixou a cidade ainda moça, depois que seus pais foram trabalhar na roça. Chegou a São Paulo para ser empregada doméstica e, tendo cursado apenas o segundo ano do antigo curso primário, sem opções de sobrevivência, acabou virando catadora de papel e outros tipos de lixo reaproveitáveis que vendia em depósitos da cidade e de onde tirava a susbsistência para si e seus três filhos – João, José Carlos e Vera Eunice –, na favela do Canindé, próxima ao rio Tietê.

 

Seria uma história igual a tantas outras, de privações e pobreza, que faz parte de uma parcela considerável da população que vive à margem da sociedade, se não fosse por um porém: além da vida dura em levantar cedo, ficar na fila para conseguir água, lavar roupa e sair para conseguir o que comer para o dia, Carolina se permitia sonhar por meio da escrita e da leitura. Pela escrita, com narrações detalhadas, em um diário (um caderno encardido), do dia a dia da vida na favela; e pela leitura, com histórias dos livros que encontrava em sua lida de catadora de papel e que reservava para ler à noite, antes de dormir, como confirma nas passagens:
 
Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.

 (...) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades (...). É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. Fiz o cafe e fui carregar agua. Olhei o ceu, a estrela Dalva ja estava no ceu. Como é horrível pisar na lama. As horas em que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários.

Carolina foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, em 1958, quando foi à favela Canindé, que se expandia na beira do rio Tietê, para fazer uma reportagem sobre a vida dos favelados. Ao conhecer Carolina e ver seus escritos, que ela guardava com a intenção de publicá-los nos Estados Unidos, na Editora Seleções (do Reader´s Digest), Dantas se surpreendeu com a solidez do seu texto que, além do diário, contava ainda com histórias e poesias.
 
Diante daquele “tesouro” encontrado, o repórter desistiu de escrever a matéria, pois Carolina já a tinha escrito: “Repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história”, diria. Era a visão de dentro da favela. Assim, a reportagem, reprodução de trechos do diário, foi publicada em página inteira na Folha da Noite, em 9 de maio de 1958, com o título “O drama da favela escrito por uma favelada” -, com os escritos de Carolina entre 1955-1958. Um ano mais tarde, Dantas publicou outra matéria, mais elaborada, na revista O Cruzeiro, e, em 1960 o livro contendo o diário de Carolina foi publicado com o título de Quarto de Despejo.

 

Audálio foi responsável pela edição do texto, depois de ler os 20 cadernos com as histórias de Carolina. Fez cortes, selecionou trechos mais significativos, mexeu na pontuação e em uma ou outra grafia para melhor entendimento, mas só. Muitos erros foram mantidos, preservando assim o original escrito. O resultado foi excepcional e correu mundo: o livro foi publicado em 15 idiomas, como francês, inglês, alemão, húngaro, italiano, holandês, tcheco, russo e japonês, entre outros, e chegou a marca dos 100 mil exemplares.
 
O relato de Carolina é tocante, a rotina se repete no dia a dia, e a temática da fome é uma constante. A luta pela sobrevivência é vista em todas as suas nuances, e ter comida para alimentar-se e alimentar os filhos é questão de honra, nem que seja vinda do lixo. Mas Carolina ainda encontra tempo para refletir, para disparar os seus desencantos com os políticos da época, como nestes trechos:

(...) O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidade de delinquir do que tornar-se util a patria e a paiz. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatorio e envia para os politicos? O senhor Janio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou pobre lixeira. Não posso resolver nem minhas dificuldades. O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome tambem é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças.

(...) Eu classifico São Paulo assim: O Palacio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.
 
(...) O que o senhor Juscelino tem de aproveitavel é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradavel aos ouvidos. E agora o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome.
 
Houve quem duvidasse da autenticidade do texto, considerando tratar-se de uma mulher semianalfabeta. No entanto, muitos saíram em sua defesa, como o poeta Manuel Bandeira: para ele, “ninguém poderia inventar aquela linguagem, aquele dizer as coisas com extraordinária força criativa, mais típico de quem ficou a meio caminho da instrução primária”.

 


Alçada a celebridade internacional, Carolina foi entrevistada para jornais e revistas como Time, Life, Paris Match e Le Monde, encontrou-se com Clarice Lispector e viajou para a Argentina e Chile. Sua vida mudou, saiu da favela com seus filhos, teve seu momento de prestígio, mas não teve estrutura para lidar com a fama.

Publicou ainda outros livros – Casa de Alvenaria (1961); Provérbios (1963); Pedaços da Fome (1963) e Diário de Bitita (s.d), mas sem alcançar o mesmo sucesso do primeiro. Logo retornou a pobreza e morreu esquecida, em 14 de agosto de 1977, em um sítio na periferia de São Paulo
 
No entanto, seu nome sempre volta aos debates. Afinal, Carolina deu voz à coletividade miserável e sem nome que vivem à margem, nos barracos e embaixo das pontes das grandes cidades brasileiras. Críticos de prestígio consideram Quarto de Despejo um documento importante de uma realidade social e outros veem nele qualidade literária. E o livro e sua autora são temas de centenas de teses universitárias e livros.
 
Da minha parte, embora tivesse lido sobre a força de seu texto e de sua história, fiquei fascinada com o livro. Quarto de Despejo e Carolina impressionaram-me tão fortemente, que me levaram, por alguns momentos, para o ambiente da favela de tal forma que me vi naquele barraco, dividindo com ela o mesmo cômodo, levantando cedo para pegar água, presenciando as brigas dos moradores, compartilhando com eles suas angústias, perambulando pelas ruas da cidade à cata de papel e materiais e cuidando dos filhos. Mas escapando de tudo isso na escrita do seu diário, nas leituras antes de dormir e nos sonhos da noite, agradecendo sempre a Deus que “envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh´alma dolorida”. Como ela, envio a Deus que me protege os meus agradecimentos, sobretudo pela oportunidade de conhecer Carolina e seu diário.

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