quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulheres da China, mulheres do mundo

Na busca por sociedades mais justas e igualitárias, uma centena de tecelãs da fábrica de tecidos Cotton, de Nova York, resolveram paralisar seus trabalhos reivindicando redução na jornada de trabalho de 12 para 10 horas. O dia era 8 de março de 1857 e a manifestação das mulheres foi controlada de forma violenta e trágica pela polícia e pelos empresários, que as trancafiaram dentro da fábrica e, em seguida, atearam fogo no local, matando-as.

Cinquenta e três anos depois, na II Conferência Internacional de Mulheres, que aconteceu na Dinamarca, a data foi instituída como o Dia Internacional da Mulher. Daquela época para cá, é inegável as conquistas alcançadas pelas mulheres, com a inserção destas no mercado de trabalho, direito ao voto, liberação sexual, entre outras. Entrentanto, o repeito a elas e os seus direitos, como ser humano, ainda não são plenos.
No Oriente esta emancipação custou ainda mais a acontecer, sobretudo pela influência política e religiosa que regem o continente. Na China, por exemplo, elas passaram – e talvez ainda passem – por duras provas que, se bem analisadas, podem muito bem ser verificadas em outras partes do mundo, mesmo no Ocidente.
Seus conflitos, dificuldades, penas, pensamentos e emoções puderam chegar até mim com pouco mais de clareza depois de ler As boas mulheres da China, obra da jornalista, radialista e escritora Xinran. Nascida em Pequim, ela trabalhou em Nanquim, cidade da República Popular da China, até 1997, quando então mudou-se para a Inglaterra com seu filho, e onde pode, finalmente, escrever e publicar seu livro sobre as mulheres.
  
Publicado no Brasil em 2003 pela Companhia das Letras, o livro traz histórias de mulheres, de diferentes idades e condições sociais, que foram entrevistadas por Xinran entre 1989 e 1997, e apresentadas no programa de rádio Palavras na brisa noturna, que a jornalista apresentava em Nanquim. A ideia era mostrar – para tentar compreender – a condição feminina na China moderna.
Logo de início senti o forte impacto que a leitura iria produzir em mim. Para começar sua narrativa, Xinran conta como quase perdeu seu manuscrito, no final de 1999, nas proximidades da estação de metrô de Stamford Brook, na Inglaterra.
Ela voltava de uma aula no curso noturno da School of Oriental African Studies (SOAS) da Universidade de Londres, quando foi abordada por um assaltante que a jogou no chão. Instintivamente segurou a bolsa, resistindo o mais que pode, a chutes, pontapés e toda série de violência. Logo acorreram pedestres e o homem foi cercado e preso.
Mais tarde, na polícia, Xinran foi indagada do porquê de ter se arriscado. A única resposta que tinha era:  “– É que meu livro estava dentro dela”. Os policiais ficaram admirados e questionaram: “– Um livro é mais importante do que a sua vida?”.
Ela pensou que não, não era. Mas também pensou que, em suas palavras, “o meu livro era a minha vida. Era o depoimento sobre a vida de mulheres chinesas, o resultado de um trabalho de muitos anos como jornalista”. Claro ela poderia escrever novamente, mas achava que já tinha sido doloroso demais escrevê-lo para reescrevê-lo. Além do mais, a memória tem muitas ramificações e, cada vez que se tenta percorrê-la, pode-se pegar um caminho diferente.
As histórias contidas no livro são tão impressionantes que muitas vezes parecem mais ficções do que reais. É mais ou menos aquilo que uma vez ouvi da jornalista Eliane Brum, por ocasião do seu livro A vida que ninguém vê, onde traz perfis de pessoas desconhecidas: “a vida pode ser extraordinária”.
Das histórias contadas em As boas mulheres da China, num total de 14, é difícil destacar qual causou maior impacto, mas uma delas me deixou bastante perplexa, tanto que fui dormir pensando nela, tive um sonho relacionado a ela e acordei ainda pensando nela.
A história era sobre Hongxue, uma menina que fora molestada pelo pai e que para fugir dele se expunha a uma série de perigos que a fizessem ficar doente, necessitando permanecer internada em um hospital. No local, ela escreveu um pequeno diário contando seu sofrimento e como resolveu ter uma mosca (sim uma mosca!) como animal de estimação, depois de ter sido acariciada pelo inseto:
No domingo passado não tive nenhum tratamento interavenoso, então dormi bem, até ser despertada por uma sensação suave na pele, um arrepio. Como só estava parcialmente acordada e com muita preguiça de me mexer, fiquei imaginando de onde viria a sensação. Fosse a causa qual fosse, continuava lá, subindo e descendo apressada pela minha perna, mas não perturbava nem me assustava de maneira alguma. Era como se um par de mãos minúsculas me acariciasse suavemente. Eu me senti muito grata àquele par de mãozinhas e quis saber de quem eram. Abri os olhos e vi: Era uma mosca! Que horror! Moscas são cheias de germes e sujeira de esgoto! Mas eu sabia que as patas de uma mosca podem ter um toque tão suave e leve, ainda que sejam sujas.
A história ficou por muito tempo na minha cabeça, mesmo depois de terminá-la e prosseguir com outras. Estas, não menos tocantes, mostraram a verdadeira face das chinesas, mulheres comuns, com seus sonhos e esperanças, amarguras e ressentimentos, além de cicatrizes profundas, como a das “mães que sofreram um terremoto”, em 1976, e perderam seus filhos na cidade industrial de Tangshan, no norte da China, causando mais de 200 mortes e centenas de feridos.
Além destas há a história de Hua´er, a menina violentada em nome da “reeducação” promovida pela Revolução Cultural e que, depois disso, tornou-se promíscua e acabou presa por mau comportamento e coabitação; a de Shilin, menina que perdeu a razão depois de constantes humilhações e estresse profundo; a das mulheres que vivem na colina dos Gritos, no noroeste da China, que são vistas apenas pela sua utilidade, como reprodutoras e serviçais, mas nem por isso se mostram infelizes; e a de Jingyi, a mulher que esperou 45 anos pelo amado, para depois encontrá-lo casado, pois este acreditava que ela tivesse morrido; ou ainda a história da infância da própria jornalista, Xinran, que se viu criada longe dos pais e sofrendo humilhações por ser considerada uma criança "poluída", ou seja, com antecedentes familiares capitalistas.
Muitas das histórias relatadas esbarram no momento político que a China vivia: primeiro os anos da Revolução Cultural (1966-1976), empreendida por Mao Tsé-Tung e que causou inúmeros traumas na população. Na época, os adolescentes foram conclamados a tomar o cargo dos professores e os camponeses, o dos intelectuais. Boa parte do patrimônio cultural da China foi destruído e intelectuais foram assassinados pela guarda vermelha, entre outros abusos.
Com a morte de Mao, em 1976, o governo de Deng Xiaoping, quis virar essa página trágica da China e, aos poucos, os chineses vislumbraram uma incipiente abertura, ainda que sob controle. O programa da rádio em que Xinran participava, Palavras na brisa noturna é um exemplo, embora este e outros meios de comunicação fossem vigiados pelo governo. Tanto que, para escrever seu livro e publicá-lo, Xinran teve de ir embora do país, caso contrário talvez fosse presa.
O que se evidencia nessas histórias é o abuso do poder e a violência sexual sofrida por muitas dessas mulheres. A carência de educação sexual e a repressão ás manifestações de afeto talvez expliquem esses crimes, mas não os justificam. Xinran, no entanto, com ternura e firmeza soube tratar as histórias, retratando bem as mulheres da China, trazendo até nós sua visão de mundo e que esta pode não ser muito diferente da nossa.

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