Toda vez que inicio a
leitura de um livro sigo um ritual. Examino primeiro o objeto livro, sinto sua
textura, manuseio seu interior. Depois leio a capa, a contracapa e a lombada,
em seguida as orelhas, o prefácio, a dedicatória, as notas introdutórias – se
tiver – e só então entro na história. Lido o livro, volto ao princípio e refaço
o ritual, agora compreendo melhor o seu conteúdo.
O procedimento tem lá suas
vantagens, porque fico sabendo, de antemão, alguma coisa sobre a história, ou
daquilo que ela contém, ou ainda o que o autor quis passar. Além disso, somos
brindados com interessantes informações, como a que vi no exemplar de A morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói,
publicado pela Editora 34, com tradução de Boris Schnaiderman.
Em sua contracapa há uma
história curiosa a propósito do suposto processo de criação e publicação do
livro. Por volta de 1883, Tolstói havia abandonado a arte e renegado toda sua
obra anterior e resolvido se dedicar à vida espiritual. Ciente disso, o também
escritor russo, Ivan Turguêniev, pouco antes de sua morte, teria escrito uma
carta a Tolstói em que se dizia grato por tê-lo conhecido: “Faz muito tempo que
não lhe escrevo porque tenho estado e estou, literalmente, em meu leito de
morte. Na realidade, escrevo apenas para lhe dizer que me sinto muito feliz por
ter sido seu contemporâneo, e também para expressar-lhe minha última e mais
sincera súplica. Meu amigo, volte para a literatura!".
Se foi por causa do pedido
de Turguêniev que Tolstói voltou à escrita não se pode precisar, com certeza, mas
o fato é que o primeiro livro literário que ele escreveu ao retomar as letras
foi A morte de Ivan Ilitch, publicado
em 1886. Segundo Paulo Rónai, que assina o apêndice na obra, muitos críticos
consideram-na como "a novela mais perfeita da literatura mundial; a agonia
de um burocrata insignificante serve de pretexto ao autor para nos contar uma
história que diz respeito ao destino de cada um de nós e que é impossível ler
sem um frêmito de angústia e de purificação".
Com essa pré-leitura, foi
com redobrado prazer que mergulhei na história. O enredo é simples, e fala
sobre a morte do juiz Ivan Ilitch, sua vida antes e durante o período em que,
acometido de uma doença no rim, vai sucumbindo até a morte.
A narrativa tem início
quando os juízes e promotores ficam sabendo da morte de Ilitch, aos 45 anos e,
aparentemente lamentando-a, já vão arquitetando e sonhando com o rodízio e as
mobilizações de cargo que essa morte acarretará na esfera Legislativa.
Em seguida retrocede no
tempo para conhecermos a vida de Ivan Ilitch, seus familiares, como se tornou
juiz, seu casamento por interesse, os filhos que gerou, sua rotina no trabalho,
as atividades que desenvolve, as cidades para as quais foi transferido.
Em uma dessas mudanças, ele
adquire um apartamento e começa a decorá-lo. É quando sofre um acidente,
machucando-se na região do rim que, a princípio, não dá atenção. Aos poucos
começa a ter dores fortes, vai ao médico, faz exames, mas não consegue saber,
com certeza, qual é o mal. Por fim começa a debilitar-se em um processo
crescente, no qual vai questionando-se sobre a vida e a morte, o papel da
família, da qual se sente distante:
Eu
não existirei mais, o que existirá então?
Não
existirá nada. Onde estarei então, quando não existir mais? Será realmente a
morte?
Não,
não quero.”... “Para quê? Tanto faz – disse a si mesmo, perscrutando a treva,
os olhos abertos. – A morte. Sim, a morte. E nenhum deles sabe nem quer saber,
e nem lamenta isso. Ocupam-se de música. (Ouvia, atrás da porta, distantes, o
retumbar de uma voz, acompanhado de ritornelos). Para eles, tanto faz, mas
também eles hão de morrer. Bobalhões. Eu vou primeiro, eles depois, hão de
passar pelo mesmo que eu. E, no entanto, estão alegres. Animais!”. Sufocava de
raiva. Teve uma sensação penosa, torturante, intolerável. Não podia ser verdade
que todos estivessem condenados para sempre a este medo terrível. Levantou-se.
No entanto, encontra apoio
no criado Guerássim, mantendo com ele um relacionamento amistoso, sem máscaras
ou mentiras:
A
partir de então, Ivan Ilitch chamava às vezes Guerássim, fazendo-o segurar os
seus pés sobre os ombros, e gostava de conversar com ele. Guerássim fazia isto
com leveza, de bom grado, com simplicidade e uma bondade que deixava Ivan
Ilitch comovido. A saúde, a força, a vitalidade de todas as demais pessoas
ofendiam Ivan Ilitch; somente a força e a vitalidade de Guerássim não o
entristeciam, e sim acalmavam-no.
Apesar de tratar de um tema
tão árido, quanto a morte e o significado da vida, aliás, obsessões na jornada
de Tolstói, A morte de Ivan Ilitch
tem um leveza na forma narrativa, cuja leitura se torna redentora. Enfim, uma
obra essencial.
Lev Nikoláievitch Tolstói
nasceu em 1828, em Iásnaia-Poliana. Um dos principais nomes da literatura
russa, é autor ainda de Guerra e paz
e Ana Karênina, entre outras grandes
obras. De espírito inquieto e idealista, procurou reencontrar a caridade do
cristianismo primitivo. Faleceu aos 82 anos de idade, na estação ferroviária de
Astapovo, após fugir de casa para isolar-se em um mosteiro.
Geralmente quando leio um clássico da literatura tenho por hábito pesquisas sobre a obra e sobre o contexto histórico da altura.
ResponderExcluirEste é um grande livro. Uma mulher que não o amava, apenas estava com ele pela posição social que isso proporcionava; pessoas a desejarem que morresse para poderem subir nas carreiras; as falsas amizades e claro a morte fazem deste livro uma pequena maravilha.
É impressionante como passados todos estes anos continua a ser um livro tão atual.