Há livros que permanecem com a gente
por um bom tempo, se não para toda a vida. Desde que li A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan, trechos da história
sempre aparecem como lampejos em minha mente. Eles chegam assim, sem mais nem
menos, em pequenos flashes, sem que eu me lembre de imediato de que lembranças
surgiram. Às vezes penso que foi de um filme que assisti, de tão nítidas essas
imagens chegam, aí vou puxando pela memória e acabo no livro de Jennifer. Sim, as
cenas são do livro, e acho que elas vão me acompanhar para sempre.
Neste mês de março, em que me propus a
ler somente mulheres escritoras, a lembrança de Jennifer e seu livro foram
constantes, e percebi que não cheguei apostar no blog minhas impressões sobre a
obra. Na verdade, fiz isso em outro canal, no Cubo 3, onde escrevi “resenhas” por
um tempo. Assim, transcrevo abaixo o texto que foi publicado naquele site, com
pequenos ajustes, para registrar aqui também o que a leitura significou para
mim.
“Tempo. Esse implacável
Inspirada
na genial obra de Marcel Proust, Em busca
do tempo perdido, a escritora americana
Jennifer Egan escreveu um dos mais ecléticos livros que li: A visita cruel do tempo, título que arrebatou
críticas e distinções, como o Tournament
of Books, competição mata-mata, criada em 2005 pela revista
eletrônica americana The Morning News
em parceria com a livraria independente Powell´s,
de Portland,
Oregon, e que
originou a Copa de Literatura Brasileira.
Logo
nas primeiras páginas do livro, publicado no Brasil pela Intrínseca, no início
do ano, com tradução de Fernanda Abreu, a inspiração na monumental obra de
Proust aparece em todo o seu esplendor, na seguinte citação:
Alegam os poetas que, ao adentrar
alguma casa ou algum jardim onde moramos quando jovens, reencontramos por um
instante aquilo que já fomos. São peregrinações muito arriscadas, que produzem
em igual medida sucessos e desilusões. Esses lugares fixos, contemporâneos de outros
anos, é dentro de nós mesmos que mais convém encontrá-los.”
E
o que se segue, no livro de Jennifer, é uma sucessão de contos contemporâneos,
que cobre o período de 1979 a 2020, tendo o universo da música como ponto
central e a implacável passagem do tempo e seus efeitos, quase sempre nefastos,
em nós. Mas o que chama mais a atenção na obra é o estilo narrativo da autora e
sua habilidade técnica em escrever ora na primeira, na terceira e ainda na
segunda pessoa, o que é mais difícil, além de uma experiência ousada: uma
apresentação de PowerPoint que, a
princípio, parece sem nexo, mas que se torna pouco a pouco um recurso ágil,
divertido e próprio para narrar parte da história do ponto de vista de uma
menina de 12 anos.
Utilizando
das várias técnicas narrativas, Jennifer constrói os capítulos, num total de 13,
sendo um deles em forma de artigo jornalístico com notas de rodapé. Confesso
que achei um pouco enfadonho, pois nunca fui muito adepta dessas notas que,
embora sirvam para explicar e ampliar alguma informação, desviam a atenção e
dificultam a retomada do texto.
Não
é fácil tentar resumir a obra, constituída de histórias que se intercalam, nem
sempre em ordem cronológica dos fatos, para mostrar o efeito do tempo, por
vezes devastador, na vida das pessoas. Assim, o livro começa num determinado
período da vida de Sascha, uma mulher de 36 anos, às voltas com a sua
cleptomania e chateada por ter sido demitida do emprego, por seu chefe Bennie,
depois de anos de trabalho. Num encontro com Alex, um homem mais jovem, ela
rouba uma carteira, e tenta se livrar de seus problemas no divã do analista.
Mais para frente sua trajetória será retomada, seja antes ou depois desse
período.
No
capítulo seguinte a história se abre com Bennie, o então patrão de Sascha, mas
em um fase anterior ao desemprego da cleptomaníaca. À frente o tempo retrocede
ainda mais para encontrarmos Bennie jovem, na época do colégio, com seus inseparáveis
amigos Scotty, Rhea, Alice e Jocelyn, com os quais forma uma banda musical.
Esses personagens serão também retomados mais para frente e assim
sucessivamente.
Bennie,
inspirado no seu mentor Lou, um produtor musical viciado em cocaína, se lança
nesse universo, sendo responsável por lançar um grupo musical de sucesso, os Conduits, do qual o baterista Bosco,
eletrizava a plateia. Mais para frente encontraremos um Bosco decaído, velho,
gordo, tentando se reerguer. É dele uma das frases mais contundentes do livro,
que trata exatamente dos estragos que o tempo faz:
É essa a realidade, não é? Vinte anos
depois, a sua beleza já foi para o lixo, especialmente quando arrancaram fora
metade das suas entranhas. O tempo é cruel, não é? Não é assim que se diz?
Algumas
histórias são mais interessantes do que as outras, como a da assessora de
imprensa, La Doll, que cai em desgraça. Primeiro a vislumbramos, brevemente em
todo o seu esplendor, para depois encontrá-la simplesmente como Dolly, num
capítulo todo seu, no qual conhecemos sua filha Lulu, de nove anos, e sua
tentativa de retornar ao mercado numa arriscada empreitada para melhorar a
imagem de um general implicado em genocídio.
Mas
é, de fato, o capítulo feito com o recurso do PowerPoint que mais encanta. Nele, a menina Alison Blake, filha de
Sascha, fala das pausas da música, uma fixação de seu irmão, e revela partes da
história dos pais já retratados em outras épocas, em capítulos anteriores. Em
dado momento, ela também parece ser atingida pela questão do tempo, quando
revela seus medos:
Do que eu sinto medo
De que as placas de energia solar
sejam uma máquina do tempo.
De que eu seja um adulta voltando a
este mesmo lugar depois de muitos anos.
De que os meus pais estejam mortos e a
nossa casa não seja mais nossa.
De que ela seja uma ruína caindo aos
pedaços sem ninguém dentro.
Morarmos todos juntos nessa casa era
uma delícia.
Mesmo quando a gente brigava. Parecia
que nunca ia terminar. Vou sentir saudades para sempre.
A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan, que participou da Flip –
Festa Literária Internacional de Paraty em 2012, é um livro gostoso de se ler,
no qual o leitor se identifica facilmente, sobretudo com relação à passagem do
tempo, esse implacável tempo que chega irremediavelmente para todos nós."
(Publicado
originalmente em Cubo 3)
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