terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Extraordinária vida real

Embora eu goste de ler, meu ritmo de leitura é um pouco lento e é sempre feito com um livro de cada vez. Da mesma forma, embarcar em outra leitura logo após ter terminado uma, também é um processo que faço aos poucos. Isso porque é muito difícil, para mim, sair de vez daquelas páginas nas quais estava submersa. Elas ainda ficam muito vivas na minha mente para que eu possa adentrar assim em outras linhas, em outros mundos.

Por isso, as histórias contidas em O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real, da jornalista Eliane Brum, que terminei de ler no final do ano passado, ainda estão muito fortes na minha memória. Guardadas as devidas proporções, acho que me aproximo um pouco daquilo que a própria autora sente quando mergulha, literalmente, de corpo e alma, em uma reportagem.

Há um comentário no livro, sobre a matéria O Povo do Meio, que Eliane fez para contar a história de um punhado de brasileiros, ignorados pelo próprio País, vivendo em uma região da Amazônia, que traduz perfeitamente isso:

Nunca vou esquecer do corpo de passarinho do seu Herculano, um rastro de gente no mundo, resistindo em cima da sua floresta, agarrado à beira do único mundo que conhece. A gente não mergulha no mundo do outro impunemente. E depois vai embora como se nada tivesse acontecido. Toda viagem é sem volta. E eu ainda estou chegando.

O Olho da Rua contém dez reportagens que Eliane fez nos últimos anos para a revista Época - cinco delas urbanas, quatro na Amazônia e uma sobre uma experiência corporal da própria autora. Mas o melhor do livro não são só as reportagens, embora só elas já valessem a leitura, há ainda, para cada matéria, uma reflexão bastante sincera da autora, uma espécie de making of, de como foi o processo de reportagem, as dificuldades que enfrentou, as escolhas feitas, os erros e os acertos cometidos. Contadas assim, as histórias, de tão reais, às vezes parecem inventadas. E, além de tudo, são magnificamente ilustradas por imagens feitas por fotógrafos-repórteres.

Eliane Brum é uma jornalista que ainda mantém aquele hábito saudável, mas tão em desuso hoje nas redações de jornais e revistas: o de estar na rua, acompanhando de perto o dia a dia das pessoas que fazem a história real. Tímida, de poucas palavras, ela consegue transmitir um elo de confiança com seus personagens por um único e simples detalhe: saber ouvir o que elas têm a dizer.

Como repórter – e como gente –, eu sempre achei que mais importante do que saber perguntar é saber escutar a resposta.
Porque só tem graça ser repórter quando nos entregamos à reportagem e deixamos que ela nos transforme. Se um dia eu voltar a mesma de uma viagem para o Amapá ou para a periferia de São Paulo, abandono a profissão. Ser repórter é renascer e se recriar a cada reportagem. De preferência por parto natural.

Isso me faz lembrar de um fato que aconteceu comigo, quando trabalhei em uma agência de house organ. Não me recordo como, nem porque, de repente me vi sentada na cozinha da empresa com o dono da casa onde a empresa funcionava. Ele começou a me contar sobre sua vida, falou com saudades da esposa, lembrou o tempo em que morava naquele prédio e das histórias vividas nele. Depois parou, me olhou e disse, envergonhado:
– Não sei porque estou lhe contando todas essas coisas.
Sorri meio sem jeito, mas respondi calmamente:
– Porque estou lhe ouvindo.

A primeira vez que vi Eliane Brum foi em 2007, no 1º Salão Nacional do Jornalista Escritor, realizado pela ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Memorial da América Latina, em São Paulo. Fui a um dos debates para ver o jornalista Caco Barcellos, que dividiria a mesa com Domingos Meirelles e Eliane Brum. Eu não a conhecia, mas havia ouvido falar sobre ela, e me entusiasmei a comprar o seu livro A Vida que Ninguém Vê, uma coletânea de histórias reais sobre a vida de pessoas comuns.
Na palestra, Caco foi para mim uma decepção, se bem que não deixei de gostar dele. É que além de chegar atrasado por causa do trânsito (se não me engano), pouco falou. É como se não tivesse nada a dizer. Eliane, ao contrário, apesar da sua grande timidez, que a fez levar um texto pronto e lido na hora, não só agradou como encantou a todos. E reinou absoluta naquele debate. Fiquei fascinada e ainda de quebra consegui que ela autografasse o seu livro para mim. Depois disso, passei a acompanhar sua trajetória.

O Olho da Rua é seu terceiro livro. Os outros dois são Coluna Prestes – O Avesso da Lenda, no qual refez a marcha do exército rebelde pelo país, entrevistando diversas testemunhas. E o segundo é o A vida que ninguém vê, que comentei acima.
Ela já se aventurou também na área de cinema, com o documentário Uma história severina, como co-diretora e co-roteirista. Nele, a jornalista acompanha a trajetória de uma nordestina que teve o destino alterado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal.

Ler as reportagens de O Olho da Rua para mim foi um misto de prazer e de dor. Fiquei encantada, mergulhei fundo nas histórias e nas vidas dos personagens retratados, ri e chorei diversas vezes. É difícil apontar qual seja melhor. Em O homem-estatística, ela convive por uma semana com um chefe de família desempregado, na casa deste. É interessante descobrir, na reflexão que faz, a forma como ela escolheu esse personagem:

Decidi encontrar meu personagem no momento que eu achava mais dramático, o da queda. Não no primeiro dia de desemprego, quando se misturam choque e expectativa de encontrar um novo lugar no dia seguinte. Nem naquela fase em que já se bateu em tantas portas que não abriram que a espinha se esfarelou. Eu buscava o momento em que se iniciava a perda de padrão de vida, lugar na família e esperança. Esse é o momento em que o homem está só no parapeito do mundo.

Nos reconhecemos. Eu era a repórter em busca de um personagem. Ele era o personagem em busca de alguém que contasse sua história. Toda reportagem é um encontro. É algo especial – e a gente sabe quando acontece. Por isso não acredito em história arrancada. Quando me perguntam qual é a minha “técnica” de entrevista, nunca sei o que dizer. Não conheço nem me interesso pelas técnicas de colegas que se orgulham de “arrancar” respostas, confissões das pessoas.


Eu não arranco nada. Só me comprometo a ouvir, a escutar de verdade, sem preconceitos. E se as pessoas me contam suas histórias é porque quiseram contar, porque me deram algo precioso: sua confiança. E é o respeito pelo privilégio de entrar em suas casas e ouvir a narrativa de suas vidas que me carrega por toda a reportagem, até a publicação. E depois dela.

Gostei ainda de A Casa de Velhos, em que conta as histórias e o dia a dia em uma casa de repouso, ou melhor dizendo em um asilo; de O inimigo sou eu, em que narra a experiência (até mesmo corporal) com a meditação vipassana, pela qual se submeteu por dez dias; de a Mulher que Alimentava, na qual testemunha os últimos 115 dias de vida de uma merendeira de escola; e dos testemunhos das mães em Expectativa de vida: vinte anos, que perdem os filhos na guerra do tráficos nas favelas.

Ao iniciar sua narrativa de morte, Eva avisa: “Fiquei fria, não choro mais, não sinto mais nada. Nada, nada, nada”. Então começa a chorar e não para mais até o ponto final. A história de sua vida sai encharcada. Zeus, na mitologia grega, compadeceu-se do pranto de Níobe, cujos sete filhos e sete filhas foram mortos. Na lenda ele transformou aquela mãe numa rocha que verte água. Foi a forma encontrada pelos antigos para representar a dor sem nome. Mães que perdem filhos assassinados são pedras que choram.

Para falar desse livro e de Eliane Brum acho que o espaço é insuficiente. Só mesmo lendo seus livros e suas reportagens para entender o que estou tentando dizer. São repórteres como ela que ainda fazem do Jornalismo uma das melhores profissões do mundo, ou seja aquela com o poder de trazer ao conhecimento e à compreensão vidas e histórias extraordinárias. Por isso mesmo, difíceis de esquecer.

4 comentários:

  1. estou encantada com seu texto! como já mencionei a vc,comecei a ler Eliane Brum todas as terças nos contos que ela escreve no site Vida Breve, e é realmente viciante o jeito como ela escreve,depois dos elogios que vc fez dela,dos livros que leu,que me despertou a curiosidade de conhecê-la.Obrigada por compartilhar com a gente tanta coisa boa e linda!

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  2. Comecei a leitura curiosa. Ao longo dela, fui querendo ler esse livro e, quando você falou sobre o debate que assistiu com a autora, do qual o Caco Barcellos participava, lembrei que já tinha ouvido essa história. Você é muito boa com as palavras, sejam faladas ou escritas.
    Abri um sorriso e continuei a leitura...
    Lembro que você me contou sobre isso ai na sua terra, logo depois de sairmos da Livraria da Vila. Eu estava entorpecida depois de ver Mario Prata e você perguntou se eu conhecia Elaine Brum. Disse que não. E aí então você contou a história, contou que ela levou suas falas impressas, contou que Caco Barcellos não foi lá essas coisas...
    Isso tudo enquanto eu, você e essa princesa amnésia que comentou acima, estávamos nos escondendo da chuva, em frente a uma casa com uma pequena cobertura.
    Nossa... Esse seu texto me causou, além de encanto, uma enorme e deliciosa nostalgia...
    Obrigada!
    Beijos, Ciça!

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  3. Cecília!!!!

    Fazia um tempinho que eu não passeava por aqui, como sempre, muita sensibilidade e vivendo o JL....coisa boa né?

    Saudades!!!

    e um ano repleto de luz pra vc!

    beijoca

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  4. Cecília, adorei seu texto sobre a Eliane. Ela é demais mesmo! E "O Olho da Rua" é excelente!
    Todas as segundas, tem textos dela no portal da revista Época. E ainda de graça, muito bacana.
    bjs

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