terça-feira, 22 de novembro de 2011

Nos intervalos da morte

José Saramago sempre me inspirou, embora tenha me aventurado pouco pelos seus livros e, isso, há bem pouco tempo. Sua paixão pela literatura, seu universo literário e sua vida pautada na escrita me deixam fascinada, mas é preciso conhecer mais de perto sua extensa obra. Demorou, mas aconteceu. E, depois da hipnótica e encantadora A Viagem do Elefante, que li – e devorei – no início do ano, foi a vez de mergulhar em As Intermitências da Morte.

Não foi uma escolha própria, uma vez que o livro foi sugerido nas reuniões do Clube da Leitura que frequento, o Bookworms (falei dele aqui http://leituraseobservacoes.blogspot.com/2011/05/no-clube-de-leitura.html), mas foi muito bem-vindo, sem falar na oportunidade de prosseguir na leitura dos livros de Saramago.

As Intermitências da Morte foi publicado em 2005 e já “pega” o leitor no início da narrativa, com a frase: “No dia seguinte ninguém morreu”. É um livro divertido, embora trate de um assunto delicado – e espinhoso – como a morte, tratado ali com o sarcasmo e a ironia, dois traços tão característicos na obra de Saramago.

A narrativa é mais uma reflexão sobre a vida, a morte, o amor, e uma crítica contumaz aos sistemas políticos, à religião, à imprensa e à sociedade moderna. Tudo começa porque a morte, aquela divindidade mitológica, representada por um esqueleto (aqui no caso uma mulher), com uma foice na mão (que Saramago chama de gadanha), desencantada com a humanidade, resolve entrar em greve a partir do primeiro dia do ano, em um determinado país fictício.

O que à primeira vista parece ser um feito extraordinário para os humanos, acaba se transformando em um emaranhado de problemas. Sem a morte os conflitos aparecem, com os doentes em fase terminal sem poderem expirar e vivendo em martírio eterno, os hospitais abarrotados de pessoas à beira da morte, os familiares com o encargo dos parentes doentes, as funerárias sem o seu “ganha-pão”, assim como as seguradoras, e a Igreja sem o seu dogma maior da vida após a morte, como na passagem de uma conversa entre o primeiro-ministro do país e o cardeal:

... Boas noites, eminência, Telefono-lhe para lhe dizer que me sinto profundamente chocado. Também eu, eminência, a situação é muito grave, a mais grave de quantas o país teve de viver até hoje, Não se trata disso, De que se trata então, eminência, É a todos os respeitos deplorável que, ao redigir a declaração que acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de abóbada da nossa santa religião, Eminência, perdoe-me, temo não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja...

Nesse interim surge a criatividade do ser humano para burlar – ou até mesmo lucrar com – a morte. Isso se dá quando em uma família, o avô e o neto estão prestes a morrer, mas sem que isso seja concretizado. O ancião, então, pede às filhas que os levem até a fronteira com outro país para que assim possam morrer em paz, em um dos relatos mais impressionantes, belos e tristes que já li.

Com essa brecha, entra em cena a máphia, que por meios escusos – em uma atividade ilícita e ilegal – se oferece, mediante pagamento, a fazer a travessia daqueles que desejam morrer ou deixar morrer os familiares,

A situação persiste por meses, até que a morte decide retornar, mas sob novas condições, explicitadas em uma carta endereçada a uma emissora de televisão: “a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios (...) ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre (...) a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para por em dia o que ainda lhe resta na vida”.

O aviso chegaria pelo correio, por meio de uma carta na cor violeta, endereçada a quem estaria prestes a morrer. Cria-se então um novo impasse no país, com as pessoas temendo receber a tal carta e aliviadas por ainda não receberem.

Em dado momento, a morte é surpreendida por uma carta, enviada a certo violoncelista, que é devolvida à ela. Intrigada, a morte faz ainda várias tentativas de entregar a carta, sem contudo obter sucesso. É quando resolve entrar em cena, materializa-se para se aproximar do músico e, assim, conseguir realizar seu intento.

A narrativa, pautada por uma escrita corrente, com o mínimo de pontuação e ausência de maiúsculas, chega então ao seu desenlace.

Curiosamente, os frequentadores do Clube de Leitura não gostaram do final e consideraram o livro uma leitura difícil. De fato, o é, mas é também delicioso, repleto de humor e crítica, por isso vale a pena prosseguir, e seu final, da mesma forma como achei em A Viagem do Elefante, terminou como tinha de ser. Na minha opinião, fechando com chave de ouro o ciclo iniciado pela obra.

Um comentário:

  1. Eu "li" esse livro "obrigada", pela faculdade, e estava em outra "vibe" na época, por isso sequer considero que o li, de fato, foi mais uma passada geral de olho para fazer provas. Hoje eu me arrependo bastante, mas com certeza darei uma outra chance, não só para Intermitências, como para outros livros do Saramago! Gostei de ler o que escreveu :DDD

    Sobre a "dificuldade" de leitura, eu me surpreendi com a minha própria evolução ao longo dos anos. Acho que tem coisas difíceis mas a gente também tem que passar por isso...viver só na zona do conforto não dá, e acho que até na literatura temos que ser assim :P

    Grande beijo e nem precisa agradecer porque eu sempre gosto de acompanhar blogs de qualidade ;D

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