quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O "menino de engenho"

Na minha adolescência, histórias do sertão e do nordeste brasileiro me apaixonavam. Descobria ali um mundo novo, um Brasil sofrido, mas fascinante com seu folclore, suas histórias, sua riqueza cultural e humana. Não é à toa que logo caiu em minhas mãos Fogo Morto, a obra prima de José Lins do Rego, um dos mais importantes escritores regionalistas da literatura nacional, que morreu há exatos 55 anos.
 
O livro me encantou de tal forma que o considero como o marco inicial de minha vida de leitora, pois foi por meio dele que o gosto pela leitura se acentuou em mim. E mais, as lembranças que tenho dele se misturam cm as recordações que tenho da escola que frequentava no primeiro ano do colégio, em São Paulo, e que tive de deixar para mudar, com minha família, para Indaiatuba uma cidade do interior paulista.
A mudança causou um grande impacto em mim, só amenizado quando descobri a maravilha de biblioteca que existia no colégio que passaria a frequentar na cidade. Ali, fui apresentada a outro livro de Lins do Rego: Menino de Engenho, uma leitura que intensificou anda mais minha paixão pela literatura regionalista e pelo escritor.
A história, narrada em primeira pessoa, tem um início perturbador, com o protagonista, o menino Carlos de Melo, o Carlinhos, narrando a morte de sua mãe, que fora assassinada por seu pai:
EU TINHA uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã acordei com um enorme barulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo para todos os cantos. O quarto de dormir de meu pai estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá e vi minha mãe estendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco. A gente toda que estava ali olhava para o quadro como se estivesse a assistir a um espetáculo. Vi então que minha mãe estava toda banhada em sangue, e corri para beijá-la, quando me pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-me. Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegou com uns soldados mandou então que todos saíssem, que só podia ficar ali a Polícia e mais ninguém. 
Levaram-me para o fundo da casa, onde os comentários sobre o fato eram os mais variados. O criado, pálido, contava que ainda dormia quando ouvira uns tiros no primeiro andar. E, correndo para cima, vira o meu pai ainda com o revólver na mão e a minha mãe ensanguentada. “O doutor matou a Dona Clarisse! Por quê?” Ninguém sabia compreender.  
Publicado em 1932, há 80 anos portanto, Menino de Engenho é o romance de estreia de Lins do Rego e o primeiro do chamado ciclo da cana-de-açúcar que o autor escreveu. Nele constam as tensões sociais da década de 1930 e a decadência dos engenhos da Paraíba, estado natal do escritor, que viveu de perto a realidade nordestina e seus problemas, tão bem expostos em sua obra.
Lins do Rego queria escrever a biografia de seu avô, o coronel José Paulino que, aliás é um dos personagens do livro, além de focar cenas da sua infância vividas no engenho. No entanto, o que acabou produzindo foi uma mescla de realidade com ficção, em um dos livros mais marcantes da minha adolescência.
Na trama, órfão de mãe e de pai (que vai preso), Carlinhos acaba indo viver com o avô José Paulino, o maior proprietário de terras da região da Paraíba no engenho Santa Rosa. Ali encontra o conforto familiar nos carinhos da Tia Maria, irmã da sua mãe e é criado sem freios, o que acaba lhe proporcionando vivenciar o bem e o mal, tornando-se precoce em muitas coisas, inclusive na iniciação sexual.
Tem pelo avô uma admiração desmedida, mas aos 12 anos, sem orientação para a vida e para o sexo, torna-se viciado e corrompido. No entanto, é por meio da sua percepção que temos a visão do mundo em que vive, cercado de servos, escravos e agregados. Fala da senzala, dos cangaceiros, dos bandidos e dos contadores de histórias, como a velha Totonha, cuja imaginação é inigualável, além das superstições e das crendices da região.
É uma leitura bastante agradável, repleta de criatividade. E, o melhor, que pode ser continuada, já que, após esta, foram publicadas mais quatro obras que dão prosseguimento à vida de Carlinhos e do Engenho Santa Rosa: Doidinho, Banguê, O Moleque Ricardo e Usina, completando assim o ciclo da cana-de-açúcar. Todos, aliás, imperdíveis.

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