Na minha adolescência, histórias
do sertão e do nordeste brasileiro me apaixonavam. Descobria ali um mundo novo,
um Brasil sofrido, mas fascinante com seu folclore, suas histórias, sua riqueza
cultural e humana. Não é à toa que logo caiu em minhas mãos Fogo Morto, a obra prima de José Lins do
Rego, um dos mais importantes escritores regionalistas da literatura nacional,
que morreu há exatos 55 anos.
O livro me encantou de tal forma
que o considero como o marco inicial de minha vida de leitora, pois foi por
meio dele que o gosto pela leitura se acentuou em mim. E mais, as lembranças
que tenho dele se misturam cm as recordações que tenho da escola que
frequentava no primeiro ano do colégio, em São Paulo, e que tive de deixar para
mudar, com minha família, para Indaiatuba uma cidade do interior paulista.
A mudança causou um grande
impacto em mim, só amenizado quando descobri a maravilha de biblioteca que
existia no colégio que passaria a frequentar na cidade. Ali, fui apresentada a
outro livro de Lins do Rego: Menino de
Engenho, uma leitura que intensificou anda mais minha paixão pela literatura
regionalista e pelo escritor.
A história, narrada em primeira
pessoa, tem um início perturbador, com o protagonista, o menino Carlos de Melo,
o Carlinhos, narrando a morte de sua mãe, que fora assassinada por seu pai:
EU TINHA uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu. Dormia no meu
quarto, quando pela manhã acordei com um enorme barulho na casa toda. Eram
gritos e gente correndo para todos os cantos. O quarto de dormir de meu pai
estava cheio de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá e vi minha mãe
estendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco. A gente toda que
estava ali olhava para o quadro como se estivesse a assistir a um espetáculo.
Vi então que minha mãe estava toda banhada em sangue, e corri para beijá-la,
quando me pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-me.
Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegou com uns soldados mandou
então que todos saíssem, que só podia ficar ali a Polícia e mais ninguém.
Levaram-me para o fundo da casa, onde os comentários sobre o fato eram
os mais variados. O criado, pálido, contava que ainda dormia quando ouvira uns
tiros no primeiro andar. E, correndo para cima, vira o meu pai ainda com o
revólver na mão e a minha mãe ensanguentada. “O doutor matou a Dona Clarisse!
Por quê?” Ninguém sabia compreender.
Publicado em 1932, há 80 anos
portanto, Menino de Engenho é o romance
de estreia de Lins do Rego e o primeiro do chamado ciclo da cana-de-açúcar que
o autor escreveu. Nele constam as tensões sociais da década de 1930 e a
decadência dos engenhos da Paraíba, estado natal do escritor, que viveu de perto
a realidade nordestina e seus problemas, tão bem expostos em sua obra.
Lins do Rego queria escrever a
biografia de seu avô, o coronel José Paulino que, aliás é um dos personagens do
livro, além de focar cenas da sua infância vividas no engenho. No entanto, o que
acabou produzindo foi uma mescla de realidade com ficção, em um dos livros mais
marcantes da minha adolescência.
Na trama, órfão de mãe e de pai
(que vai preso), Carlinhos acaba indo viver com o avô José Paulino, o maior
proprietário de terras da região da Paraíba no engenho Santa Rosa. Ali encontra
o conforto familiar nos carinhos da Tia Maria, irmã da sua mãe e é criado sem
freios, o que acaba lhe proporcionando vivenciar o bem e o mal, tornando-se
precoce em muitas coisas, inclusive na iniciação sexual.
Tem pelo avô uma admiração
desmedida, mas aos 12 anos, sem orientação para a vida e para o sexo, torna-se
viciado e corrompido. No entanto, é por meio da sua percepção que temos a visão
do mundo em que vive, cercado de servos, escravos e agregados. Fala da senzala,
dos cangaceiros, dos bandidos e dos contadores de histórias, como a velha
Totonha, cuja imaginação é inigualável, além das superstições e das crendices da
região.
É uma leitura bastante agradável,
repleta de criatividade. E, o melhor, que pode ser continuada, já que, após
esta, foram publicadas mais quatro obras que dão prosseguimento à vida de
Carlinhos e do Engenho Santa Rosa: Doidinho,
Banguê, O Moleque Ricardo e Usina, completando
assim o ciclo da cana-de-açúcar. Todos, aliás, imperdíveis.
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