sexta-feira, 25 de outubro de 2013

"A menina"

Não me lembro exatamente quando foi a primeira vez que ouvi falar da “menina”. Talvez tenha sido em 2007, quando um colega de trabalho contou ter lido o livro e se surpreendido com sua história. No decorrer do tempo, outros comentários aguçaram minha curiosidade, mas não o bastante para querer conhecê-la. Foi só há um ano que a “menina” começou a me inquietar, quando uma amiga me falou mais intensamente sobre sua história e o quanto ela tinha deixado marcas em sua vida de leitora.
 
Não foi preciso muito mais para que esse livro entrasse para a minha lista, mas confesso que não o teria passado na frente se a obra não tivesse sido sugerida pelo Clube de Leitura que frequento. E foi assim que a “menina” introduziu-se na minha vida, conquistando, a cada página, meu coração e minha mente. E, ao conhecer sua história mais de perto, indaguei-me porque ainda não tinha lido antes A menina que roubava livros.
 
Há sempre um momento certo para as histórias chegarem até nós. Talvez esse tenha sido o caso do livro de Markus Zusak, publicado no Brasil pela Intrínseca. Não cheguei a comprar o livro para ler, o que é uma pena, mas sim emprestei-o da biblioteca, e fiquei sabendo que esta é uma das obras mais requisitadas pelos leitores, por isso o livro já mostrava sinais de ter sido bastante manuseado. E aqui um parênteses (gosto dessa sensação de usado-lido, é como se das páginas emanassem as vibrações dos leitores que se aventuraram por elas).
 
O livro conta a história de Liesel Meminger, menina enviada pela mãe comunista, junto com o irmão menor, para uma cidade alemã no final dos anos de 1930 e início dos de 1940. Ali, um casal se dispõe a adotá-la por dinheiro. No meio do caminho o irmão morre e é enterrado em meio à neve por um jovem coveiro que deixa um livro cair – O manual do coveiro. Sem que ninguém veja, Liesel pega o livro, tornando-se este o primeiro de uma série que ela vai roubar ao longo dos anos.
 
A história é narrada pela Morte, que muitas vezes acompanha a menina, mas sem conseguir alcançá-la. E surpreende pela forma como o escritor dá vida aos personagens e à narrativa, de uma forma que encanta e envolve o leitor, com detalhamentos que parecem vistos sob a perspectiva de uma criança, talvez daí sua classificação infanto-juvenil. O que não quer dizer que o livro não encante os adultos, e até mesmo próprio para eles.
 
Em muitos momentos a trama é antecipada, mas longe de estragar a surpresa, aguça ainda mais a curiosidade em saber como tudo se dará, como logo no início da narrativa:
 
Quando viesse a escrever sua história, ela se perguntaria exatamente quando os livros e as palavras haviam começado a significar não apenas alguma coisa, mas tudo. Teria sido ao pôr os olhos pela primeira vez na sala com estantes e mais estantes deles? Ou quando Max Vandenburg chegara à Rua Himmel, carregando as mãos cheias de sofrimento e o Mein Kampf de Hitler? Teria sido durante a leitura nos abrigos? Na última parada para Dachau? Teria sido A Sacudidora de Palavras? Talvez nunca houve uma resposta exata sobre onde e quando isso havia ocorrido. Seja como for, estou me adiantando. Antes de entrarmos em qualquer desses assuntos, primeiro precisamos dar uma volta pelos primórdios de Liesel Meminger na Rua Himmel e pela arte de saumenschiar.
 
Na nova casa, Liesel é assombrada por pesadelos e aprende a conviver com a rudeza da mãe adotiva, mas que no fundo esconde um coração generoso. E ali conhece o prazer da descoberta das palavras na companhia do pai adotivo, Hans Hubermann, um pintor de paredes e tocador de acordeão, que a introduz nas leituras, ainda que mal saiba ler. No porão, onde invariavelmente se reúnem para ler, vão soletrando palavras, escrevendo nas paredes e tentando decifrar o significado delas, de forma a aprender o seu valor e força.
 
... Segundo ela sentia um orgulho evidente do papel de Hans Hubermann em sua educação. Talvez você não imagine, escreveu, mas não foi tanto a escola que me ajudou a ler. Foi papai. As pessoas acham que ele não é inteligente, e é verdade que ele não lê muito depressa, mas eu não tardaria a saber que as palavras e a escrita tinham salvado sua vida, uma vez. Ou, pelo menos, as palavras e um homem que lhe ensinara o acordeão...
 
Enquanto isso, a menina faz amizade com Rudy, um garoto levado, mas leal a ela que mais tarde se vê obrigado a integrar a Juventude Hitlerista. E ainda conhece um judeu, que o pai acolhe e esconde no porão da casa. É nesse lugar que ele escreve livros artesanais que contam sua história sob a influência de Liesel e a História de uma Alemanha nazista.
 
É outro olhar sobre o nazismo, visto do ponto de vista dos alemães residentes em cidades pequenas, muitos dos quais desfavoráveis à perseguição dos judeus. Que sofreram também com a Guerra e os bombardeios e que não podiam se mostrar contrários ao governo e a Hitler. Para contar essa outra face, Markus Zusak, que é filho de um austríaco e uma alemã, inspirou-se nas inúmeras histórias a respeito da Alemanha Nazista, do bombardeio de Munique e dos judeus marchando pela pequena cidade alemã de sua mãe.
 
Depois de “O manual do coveiro”, outros livros vão se fazer presente na vida de Liesel, a maioria roubados e que constituem a base dos capítulos de A menina que roubava livros. Cada qual com sua importância e influência na sua vida, e muitos deles levados da biblioteca da mulher do prefeito, uma amizade que faz um tanto inusitada, silenciosa, cúmplice, equivocada e ao mesmo tempo salvadora.
 
Uma das passagens mais bonitas é quando os moradores da rua em que Liesel mora tem de se reunir no porão da casa de um deles para se refugiar da ameaça da bomba que deverá ser lançada pelos Aliados na cidadezinha. A menina leva então seus livros para o local e no meio da tensão, quando todos não sabem mais o que fazer no reduzido espaço, ela abre um deles e começa a ler baixinho:
 
Quando ela virou a página dois, foi Rudy quem notou. Atentou diretamente para o que Liesel estava lendo e deu um tapinha no irmão e nas irmãs, dizendo-lhes para fazerem o mesmo. Hans Hubermann aproximou-se e convocou a todos e, em pouco tempo, uma quietude começou a escoar pelo porão apinhado. Na página três, todos estavam calados, menos Liesel.
A menina não se atreveu a levantar os olhos, mas sentiu os olhares assustados prenderem-se a ela, enquanto ia puxando as palavras e exalando-as. Uma voz tocava as notas dentro dela. Este é o seu acordeão, dizia.
 
É o poder reconfortante e sedutor das palavras que, reunidas frase a frase, dão sentido a uma ideia, um pensamento, uma impressão. Juntas elas podem, se não de todo mudar a situação, ao menos ajudar a compreender e suportar as durezas da vida. Pelo menos é isso que A menina que roubava livros me fez sentir.

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