quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Dia D #Drummond

“É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”


Neste ano Carlos Drummond de Andrade foi companhia constante nas minhas manhãs. Diariamente, por quase cinco meses, um poema do livro Antologia Poética (que contém os principais textos literários do poeta), inspirava e iluminava o meu dia.
 
Um desses poemas causou um forte impacto em mim, e cheguei às lágrimas ao seu final, de tanta emoção e beleza que senti ao lê-lo: A flor e a náusea.
 
Publicado em 1945 no livro A Rosa do Povo, que traz 55 poemas de Drummond, A flor e a náusea é uma forma de questionamento, de filosofia, de protesto, mas com um lirismo que suscita reflexão sobre o mundo e sobre uma sociedade injusta pós-Segunda Guerra. E o interessante é que continua tão atual.
 
Neste dia, em que comemoramos o Dia D, o dia de Drummond, reproduzo o poema, contribuindo assim para espalhar a poesia de Drummond pela rede mundial.
 
A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

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