quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Antes de nascer... (e depois de Mia Couto)

Com tantos e tão bons livros ao redor é natural que o leitor (e aqui me incluo) tenha dificuldade em escolher esta ou aquela leitura para fazer. Precisamos ser seletivos, optar por uma e deixar outra mais para frente, em uma escolha que nem sempre é justa e acertada.
 
 
Seja como for há tempos tinha Mia Couto em minha lista, esperando sua vez chegar, talvez começando por Terra Sonâmbula, um de seus mais aclamados romances. Mas, se não fosse pelo Clube de Leitura Traçando Livros, talvez Mia ficasse ainda mais um tempo hibernando e, certamente, perderia a chance de ler – e viajar por - um dos mais fascinantes livros que passaram pelas minhas mãos: Antes de nascer o mundo (na publicação brasileira da Companhia das Letras – o original tem o título de Jesusalém).
 
Publicado no Brasil em 2009, o romance é uma mescla de poesia e prosa, em que o sonho e a realidade se confundem, de tal forma que na leitura que fiz, essa dualidade esteve presente na minha rotina, no meu dia a dia. Foi tanta empatia que senti com a escrita de Mia Couto que a leitura foi lenta – mas contínua e intensa – de maneira a saborear palavra por palavra, frase a frase, para que nada se perdesse. Foram inúmeras as marcações de trechos preferidos, que quase assinalei o livro inteiro.
 
Já no início o autor nos prende a atenção – e nos torna seus cúmplices e seguidores – com um belíssimo começo:
 
A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: “Jesusalém”. Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, final.
 
A história é narrada por Mwanito, filho mais novo de Silvestre Vitalício, homem profundamente marcado pela morte da mulher Dordalma e que se refugia, junto com o menino, mais o outro filho (Ntunzi), o empregado Zacaria Kalash e o Tio Aproximado em uma terra distante e isolada para esquecer o passado (até seus nomes são trocados). Ali, Silvestre insiste que o mundo acabou e que só eles sobreviveram, construindo assim uma nova realidade em que não existe passado, nem futuro:              
   
– Mas, pai, nos conte. Como faleceu o mundo?
– Na verdade, já não me lembro.
– Mas o Tio Aproximado.
– O Tio conta muita história...
– Então, pai, nos conte o senhor.
– O caso foi o seguinte: o mundo acabou mesmo antes do fim do mundo.
Terminara o universo sem espetáculo, sem rasgão nem clarão. Por definhamento, exaurido em desespero. E assim, vagamente, meu pai derivava sobre a extinção do cosmos. Primeiro, começaram a morrer os lugares-fêmeas: as nascentes, as praias, as lagoas. Depois, morreram os lugares-machos: os povoados, os caminhos, os portos.
– Sobreviveu apenas este lugar. É aqui que vivemos de vez.
Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias. Silvestre não sonhava, nem aguardava notícias. No princípio, ele queria um lugar onde ninguém se lembrasse do seu nome. Agora, ele próprio já não se lembrava quem era.
 
Na história, Mwanito tinha três anos quando essa mudança aconteceu, portanto, sem lembranças vívidas do que ficou; Ntunzi, já tinha 11 anos, sendo assim, carrega conhecimentos e imagens na memória, que se tornam fundamentais para o irmão mais novo. Nesse novo mundo, povoado por homens, a lembrança da mãe vai acompanhar a vida dos meninos, bem como de todos os habitantes, de forma que, embora morta, Dordalma se constitui no principal elo de ligação entre os personagens. E me arriscaria a dizer até dos leitores, pois sua influência também chegou até mim.
 
Em uma das passagens do livro, Mwanito fala de um sonho que teve com a mãe, em que a vê e a abraça, numa ternura intensa e sem fim. Minha mãe já morreu, mas não pensei nela quando li essa passagem, só que acabei dormindo e sonhei com ela, dessa mesma forma: eu chegava em casa, quando a via na sala, me aproximava com emoção e a abraçava chorando muito, de saudade. Quase nunca lembro dos sonhos que tenho, só que na manhã seguinte acordei com as imagens nítidas na minha mente, mas só fiz a associação quando retomei a leitura e percebi o que tinha acontecido. Fiquei ainda mais encantada.
 
No livro, Silvestre Vitalício impõe sua vontade e manias e age como um ditador. Mwanito é a pureza e chamado pelo pai como “afinador de silêncios”, pois tinha a capacidade de ficar tão calado que chegava a espalhar essa quietude – e por consequência – a paz aos que estavam ao seu redor, como descrito na passagem:
 
... Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
 
Ntunzi, por sua vez, é contestador, tenta se preservar da alienação imposta pelo pai; já Tio Aproximado serve de ponte entre o novo mundo e o que ficou para trás, encarregado de trazer os mantimentos necessários à sobrevivência do grupo; e Zacaria Kalash, um ex-militar, serve a Silvestre com um fidelidade incrível, mas no decorrer da trama sua história e identidade ao serem reveladas acabam por justificar essa servidão. Entre eles há ainda uma jumenta, Jezibela, com a qual Silvestre se serve para aliviar suas mágoas e desejos.
 
A dinâmica do grupo, contudo, é quebrada com o surgimento de uma mulher na trama: Marta, uma portuguesa que chega ao lugarejo à procura de seu marido fotógrafo, que ela acredita estar perdido no local. Parte do romance, portanto, é narrado por essa personagem, por meio de suas cartas, lidas em segredo por Mwanito. É, portanto, esta mulher que ele se refere na citação no início da história e que vai provocar sentimentos diversos nos homens de Jesusalém:
 
Foi então que sucedeu a aparição: surgida do nada, emergiu uma mulher. Uma fenda se abriu a meus pés e um rio de fumo me neblinou. A visão da criatura fez com que, de repente, o mundo transbordasse das fronteiras que eu tão bem conhecia.
 
A partir daí a estrutura dos personagens e do local começa a ruir, levando a um desencadeamento no qual Mia Couto faz uso da mítica, confundindo a realidade com a fantasia, até o final poético. Vale ressaltar que na história, questões raciais, críticas sociais e políticas e a condição da mulher são temas debatidos, sobretudo este último, como na passagem em que Noci questiona Marta:
 
– Nós, mulheres. Por que aceitamos tanto, tudo?
– Porque temos medo.
O nosso medo maior é o da solidão. Uma mulher não pode existir sozinha, sob o risco de deixar de ser mulher. Ou se converte, para tranquilidade de todos, numa outra coisa: numa louca, numa velha, numa feiticeira. Ou, como diria Silvestre numa puta. Tudo menos mulher. Foi isto que eu disse a Noci, neste mundo só somos alguém se formos esposa. É o que agora sou, mesmo sendo viúva. Sou a esposa de um morto.
 
Mia Couto é pseudônimo de Antonio Emílio Leite Couto. Nasceu em Moçambique e estudou medicina antes de se formar em biologia. Possui obra literária extensa e diversificada, incluindo poesia, contos, romance e crônica, e atualmente dedica-se a estudos de impacto ambiental. Em 1999, recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra; em 2007, o prêmio União Latina de Literatura Românicas.
 
Existem livros dos quais gostamos muito, tornando-se nossos preferidos; existem aqueles que lemos e relemos sempre e ainda os que lembramos em todos as ocasiões. Alguns, porém, não recomendaríamos ou indicaríamos a determinadas pessoas, por uma ou outra razão, afinal, o que marcou para mim pode não significar nada para outro. Sempre pensei nisso e, até hoje, embora tenha livros dos quais sempre falo, não conseguia pensar em um que indicaria sem precedentes. Pois é, até hoje, porque Antes de nascer o mundo pode até não ser o livro da minha vida, mas é, com certeza, o meu livro-coringa, ou seja, aquele que eu indicaria a quem quer que me peça uma sugestão de leitura, sem medo de errar. E olha que isso não é pouca coisa não, é uma grande distinção.

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