quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Tia Júlia e o Escrevinhador

Há quem diga que Tia Júlia e o Escrevinhador não está entre os melhores romances de Mario Vargas Llosa, ou mesmo dos escritores de língua latino-americana. Pode até ser verdade, mas é, com certeza, um dos mais divertidos e deliciosos de se ler. Pelo menos foi isso o que senti quando li: diversão pura, além da curiosidade e da identificação com um dos personagens principais – Pedro Camacho.
 
O personagem trata-se de um escritor de radionovelas boliviano, que vai para o Peru trabalhar na Rádio Central, emissora onde Varguitas (Vargas Llosa) trabalha. Autor dedicado e de mão cheia, logo cai nas graças dos ouvintes, mas no decorrer da trama, com tantas histórias e personagens de novelas criados, ele começa a confundir as tramas.
 
E é exatamente aí que faço um paralelo, porque vez por outra, depois de tantos livros lidos, trechos das histórias e alguns personagens me vem à mente, assim sem mais nem menos, obrigando-me a puxar pela memória para saber de qual obra pertencem. Porém, nada que uma boa circunspecção não consiga desvendar.
 
Similaridades à parte, o romance, embora ficcional, traz muitos dos fatos reais da vida de Mario Vargas Llosa, que na mocidade sonhava em ser escritor, trabalhou em uma rádio e aos 18 anos se apaixonou pela Tia Júlia, a irmã da mulher do seu tio, que tinha 32 anos, um escândalo na época. Dessa forma, vemos Varguitas ensaiar os primeiros passos na escrita, cujos rascunhos quase sempre vão parar na lata do lixo, e o desenrolar do romance com Tia Júlia.
 
É quando ele conhece Pedro Camacho, um autor que cria tramas mirabolantes, mas que encantam os radiouvintes. Excêntrico, workaholic e autossuficiente, Camacho fascina Mario, com quem trava uma amizade inusitada. Com o sucesso alcançado, o escritor chega a escrever dez novelas e, em dado momento, sobrecarregado de trabalho, começa a misturar os enredos e os personagens. Nesse meio tempo, o romance de Varguitas e Tia Júlia é descoberto pela família.
 
Dessa forma correm duas histórias paralelas, a do protagonista Mario e a de Pedro Camacho, cujos capítulos ainda são entremeados pelas histórias do escritor boliviano, de forma que ficamos conhecendo o enredo e os personagens de algumas novelas. Nestas, percebemos os desvarios da mente de Pedro Camacho, com a confusão das tramas e dos personagens, até a última em que o próprio leitor já nem mais sabe quem é quem.
 
Essa forma de escrever, os romances dentro do romance principal, lembrou-me Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino, cuja trama começa com o Leitor, personagem principal, comprando um livro e começando a ler Se um Viajante numa Noite de Inverno, romance que se inicia numa estação ferroviária enfumaçada, mas à medida que o Leitor avança na leitura, ele percebe que, por um erro de encadernação, a história repete até o fim as páginas iniciais. O Leitor volta então à livraria, adquire um novo exemplar, mas este narra outra história, apresentando também problemas de encadernação. E isso vai se repetir até o final do livro, de forma que há a história principal do Leitor, que até conhece uma Leitora também em busca do mesmo livro, e várias histórias dos romances que eles vão adquirindo no decorrer da trama.
Em Tia Júlia e o Escrevinhador, porém, o que dá charme é saber que a história faz parte da própria história de Vargas Llosa, e dos seus primeiros passos para se tornar um grande escritor, cujo alcance extrapolou os limites do Peru e da América Latina, até a conquista do Prêmio Nobel de Literatura, em 2010. Com certeza, a epígrafe que ele escolheu para iniciar Tia Júlia tem muito a ver com sua obstinação pelo exercício da escrita:
 
Escrevo. Escrevo que escrevo. Mentalmente me vejo escrever que escrevo e também posso me ver a me ver escrevendo. Lembro de mim já escrevendo e também me vendo escrever. E me vejo lembrando que me vejo escrever e me lembrando que me vejo lembrando que escrevia e escrevo me vendo escrever que me lembro de ter me visto escrever que me via escrevendo que lembrava de ter me visto escrever que escrevia e que escrevia que escrevo que escrevia. Também posso me imaginar escrevendo que já havia escrito que me imaginaria escrevendo que havia escrito que imaginava a mim escrevendo que me vejo escrever que escrevo.
Salvador Elizondo, o grafógrafo.
 
Mario Vargas Llosa sempre me encanta com suas histórias.

 

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