terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Em São Paulo com o urbenauta

Quando eu era adolescente sonhava ser missionária em terras sofridas e distantes, fora do Brasil, ou ainda mais perto, no sertão, participando do Projeto Rondon, uma iniciativa do governo brasileiro para promover o contato de estudantes universitários voluntários com o interior do país. O Projeto durou de 1967 a 1989, e em 2005 foi relançado.

Seja como for, na época gostava também de ler os romances regionalistas de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e João Cabral de Melo Neto que falavam da vida dura no nordeste brasileiro, da seca, da fome. Compadecia-me do povo e queria fazer alguma coisa.

O tempo passou, acabei focando em outros interesses, mas sem deixar de me informar, vez por outra, da situação das terras mais carentes, e gostando ainda daquela literatura, uma das melhores das quais tenho lembrança, por isso volto a ela sempre que posso, porém... depois que fui morar, por um período, em Indaiatuba, interior de São Paulo, acabei me descobrindo extremamente urbana.

Anos depois, de volta à capital paulista, onde nasci, minha vontade era conhecer tudo aquilo que ela proporciona em cultura, lazer, novos horizontes. E, apesar do caos urbano, da violência, da poluição e de todas as asperezas e conflitos, a identificação foi rápida: amo São Paulo e não consigo viver mais sem ela.

Assim, todas as vezes que tirava férias do trabalho, ao invés de viajar eu preferia ficar na cidade, explorando seus recantos, seus mistérios, suas belezas escondidas. É mais ou menos aquilo que faço se mudo de casa ou de trabalho, um reconhecimento do terreno para saber o que ela oferece, seja uma farmácia, um mercadinho, uma padaria, uma biblioteca por perto (há uma próxima ao meu trabalho e outra na região de casa).

Hoje, descobri também o prazer das viagens fora da capital e do estado, mas sempre reservo alguns dias para aproveitar minha cidade, prosseguindo no meu desbravamento por solo paulista. Por isso não entendi como até hoje não tinha lido Expedições urbenauta – São Paulo: uma aventura radical, de Eduardo Emílio Fenianos, publicado em 2002 pela Univer Cidade. Ainda mais porque conhecia o livro e o tinha na minha lista de leituras há anos. São coisas da vida, mas este ano e com a proximidade do aniversário da cidade resolvi me aventurar nessa viagem literária para encontrar uma São Paulo que há muito ansiava por ver.

Já vi que este post vai ficar longo, mas não tem outro jeito, falar de São Paulo é se perder no tempo e no espaço. Ainda mais se este espaço abrigar 256,1 quilômetros de selva real, que inclui a Serra da Cantareira e os rios Juqueri, Tietê, Pinheiros, Embuguaçu, Capivari, Ipiranga e as represas Billings e Guarapiranga, além de 96 distritos da selva de pedra, num total de 1.528,5 quilômetros quadrados, exatamente a quantidade percorrida por Eduardo na aventura, totalizando 120 dias dentro de São Paulo.

O projeto teve início em 1999, depois que Eduardo desbravou Curitiba, em 1997. O objetivo era explorar as selvas reais e de pedra da maior cidade do Brasil, chamar a atenção dos moradores e da sociedade para os problemas de uma metrópole e, assim, tentar encontrar soluções.

Criada por Eduardo, a palavra urbenauta (urbe = cidade; nauta = marinheiro, marujo, navegador, navegante) significa o navegante da cidade, aqui o viajante em sua própria cidade. Embora tenha feito a viagem sozinho, ele contou com a participação de 21 pessoas no projeto. Assim, foram criadas roupas próprias para o desbravamento e um carro, chamado urbenave Gulliver, um 4x4 readaptado, serviu como transporte.

A meta era percorrer todo o trajeto traçado, comer e dormir na floresta e às margens dos rios explorados, nunca voltar para casa, em hipótese alguma, ficar pelo menos um dia em cada distrito, onde deveria conseguir pouso e comida, de preferência em residências para conhecer o modo de vida das pessoas e estreitar relacionamentos, fotografar, filmar, fazer anotações. Mostrar lugares inusitados e diferentes de São Paulo, olhar para a cidade com outro olhar, perceber que o feio não é tão feio quanto pintam e que o bonito nem sempre é tão belo assim.

Eduardo conta que na periferia as ruas são movimentadas, há gente nas calçadas, o comércio é forte; já nos bairros mais ricos, as ruas são impecavelmente vazias, talvez por isso recebeu maior acolhida nos lugares carentes. Ele conseguiu pousada na selva de pedra praticamente todos os dias, com exceção de um, em que teve de dormir na rua, uma experiência que jamais poderá esquecer, e que ele conta no trecho a seguir:

A primeira novidade de uma noite na rua foi sentir os passos das pessoas que caminham na rua, dentro dos meus ouvidos, passando ao lado da minha cabeça. A situação desesperadora é a de não saber se aqueles que caminham em minha direção seguirão seu rumo, se caminham em passos que vêm para ajudar ou se seguem em passos que vêm para provocar algum mal, destruir, assaltar ou atear fogo em um corpo que pode ser um mendigo ou um amontoado de lixo (para certas pessoas isso tanto faz) como aconteceu com um índio que dormia em uma rua, de Brasília, a capital do Brasil. Lembrei muitas vezes deste episódio.

Do que fogem os passos que correm rápido na madrugada? O que pensam os passos que andam e, de repente, param ao meu lado? Há passos que cheiram bem e passos que cheiram mal. Passos masculinos e passos delicadamente, escandalosamente, indiscretamente femininos. Minha noite de sono começou com passos. Medo de passos. Em seguida veio o som das motos e dos carros acelerando e a música. A música de quem está voltando da balada e nem, imagina estar atrapalhando alguém que tenta dormir na rua.

Nos 120 dias em que esteve na rua, explorando o terrítório de São Paulo, Eduardo conheceu recantos inacreditáveis, como o belo rio Capivari; navegou na poluição do Tietê e de outros rios; passou por favelas e bocas de tráfico; conversou com bandidos, mendigos, ex-presidiários, prostitutas e trabalhadores e se hospedou na casa de alguns deles; aportou na Aldeia Indígena Guarani Tenon Doporã, perto de Parelheiros; viu ricos e pobres convivendo lado a lado em alguns bairros; conseguiu abrigo na casa de Ana Maria Braga e do sertanista Orlando Vilas Boas, ainda vivo na época; presenciou a solidariedade na periferia; participou de mutirão; passou fome tendo de viver por um mês com um salário mínimo; se sentiu só no centro de São Paulo; viu casas cobertas de grades e outras com muros baixos; praticou a semaforopoesia e semaforofilosofia (*); e aprendeu a pedir, a ouvir, a falar e a conviver com diferentes tipos de pessoas. Tudo isso, com certeza, fez dele uma pessoa melhor, com mais facilidade de chegar ao próximo.

Mas em alguns locais o urbenauta teve de se desdobrar para fugir de situações perigosas e, por duas vezes teve uma arma apontada para ele. Com humildade e cuidado no jeito de falar, conseguiu o respeito da turma barra pesada que encontrou. Ouviu suas histórias, não julgou, apenas colheu material o suficiente para ajudar a melhorar a vida das pessoas. Em outros pontos não precisou se contorcer tanto, pois como a aventura foi acompanhada pelo jornalismo da televisão, algumas pessoas já haviam visto e ouvido falar do urbenauta.

A última região a ser desbravada foi a Zona Leste. Ali, já cansado, com dores no pescoço e no corpo, Eduardo até quis desistir, mas extraindo de si forças até então desconhecidas, levou até o final, com despojamento, sua trajetória. Exemplo disso está no trecho:

Senti na pele como a felicidade pode estar nas coisas simples e como é relativa. No início desta semana felicidade para mim foi encontrar um lugar para dormir e tomar um banho quente, em um dia de frio e chuva, em uma casa de invasão, ao lado de um boca de tráfico, no Jardim São Carlos, bairro da Vila Jacuí.

No momento em que fui aceito na casa, ao tomar o banho quente, ao me deitar em meu saco de dormir, embaixo de quatro paredes, descobri como alguém pode sorrir morando em uma favela.

A aventura é emocionante e, por vezes, me peguei chorando, totalmente entregue aos relatos de Eduardo. O único senão do livro é a falta de fotografias que ajudariam a ilustrar melhor a narrativa, mas nada que prejudique o trabalho. Descobri, depois, que há outro livro repleto de fotos de São Paulo, como um roteiro turístico e histórico da cidade.

Eduardo Fenianos, que é formado em Comunicação Social e Direito e tem pós-graduação em Psicopedagogia e extensão universitária em Antropologia Social, prossegue com seu trabalho de urbenauta, ministrando palestras, mas, acima de tudo, se aventurando por outras cidades do Brasil, escrevendo livros e produzindo vídeos, fotos e mapas, todos editados pela Univer Cidade. Para saber mais acesse http://www.urbenauta.com.br/

No aniversário de São Paulo, a melhor maneira de homenagear a cidade é conhecê-la e, para conhecê-la, nada melhor do que desbravá-la numa nova leitura. O resultado, sem dúvida, é recompensador. Como Eduardo afirmou em sua obra “São Paulo é o melhor livro que li”.

(*) Semaforopoesia e semaforofilosofia é a forma que Eduardo encontrou para driblar o tempo de parada nos semáforos de São Paulo, como este pequeno poema produzido por ele durante a viagem:

Verdade Cidade
Cidade Verdade
Veracidade
Verdacidade
Será mentira
Será verdade.

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