segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O Miramar Oswald de Andrade

Quando o escritor Oswald de Andrade, ícone da Semana de Arte Moderna, movimento que aconteceu há exatos 90 anos e lançou as bases para transformar a cultura brasileira, pensou em escrever Memórias Sentimentais de João Miramar, tinha em mente fazer uma espécie de diário da viagem que fez à Europa, entre fevereiro e setembro de 1912. A obra começou a ser concebida em 1914 e só foi publicada em 1924, dois anos depois daquele movimento, tornando-se um fruto maduro dos ideais então plantados.

Foram dez anos elaborando, reelaborando, escrevendo, reescrevendo até chegar ao seu formato final das Memórias Sentimentais de João Miramar, romance que reúne um misto de gêneros e que acompanha a vida do protagonista da infância à idade adulta. Este, uma caricatura do paulistano burguês dos primeiros anos do século XX, adepto da cultura estrangeira.

O estilo de narração é bastante diversificado e constitui-se de pequenos textos, fragmentos, como na linguagem cinematográfica, num total de 163, escritos em diversos estilos, ora em citações, ora em poemas, ora em diálogos, ora em relatos e assim sucessivamente, todos com pequenos títulos. Não é uma leitura fácil, mesmo porque o texto é recheado de referências a figuras, personagens e expressões da época, algumas não muito conhecidas nos dias atuais.

Mas isso não é tudo. Oswald constroi uma narrativa não linear, com inversões de frases e fatos, que vão e voltam no tempo, o que faz, por vezes, o leitor voltar ao parágrafo para recapitular os fatos. Apesar disso o texto é surpreendente e, quando lido com atenção, é agradabilíssimo e engenhoso. Não é à toa que causou furor e perplexidade à época da sua publicação, com críticas favoráveis e outras – muitas até – não tão bem-vindas.  A desordenação na sintaxe da narrativa, numa proposta moderna, ainda hoje causa estranheza.

A edição que li é da Editora Globo, publicada em 1991, mas o original de 1924 teve capa de Tarsila do Amaral e foi totalmente custeado pelo autor. O prefácio do livro é assinado por Machado Penumbra, um intelectual fictício que também aparece na história. Esta tem início na infância de João Miramar, quando o personagem fica órfão de pai, numa das passagens mais bonitas do livro, intitulada Gare do Infinito:

Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava esperando no jardim.
Levaram-me para uma casa velha que fazia doces e nos mudamos para a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela.
No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai.

Criado pela mãe, uma mulher rigorosa, Miramar cursa escola mista e depois é transferido para uma instituição só de meninos, onde faz amizades que o acompanham ao longo dos anos. Mais tarde o personagem viaja a Paris e a Europa, voltando ao Brasil por ocasião do falecimento da mãe. É quando reencontra Célia sua prima e se enamora dela, vindo posteriormente a se casarem.

Começa a Primeira Guerra Mundial e Célia dá à luz a primeira – e única – filha do casal, Celiazinha. Miramar, contudo, esbanja a vida, arruma uma amante, atriz de cinema, passa a bancá-la e se aventura em uma produtora. Os negócios desandam e a infidelidade é descoberta, dando início à sua derrocada, exemplificada no fragmento Mobilização:

Higienópolis encheu-se às cornetadas da falência e desonra. Meu folhetim foi distribuído grátis a amigos e criados. E tia Gabriela, sogra granadeira grasnou graves grosas de infâmias.
Entrava doméstico para comer e dormir longe de Célia. Os criados eram garçons de restaurante.

E, assim, a vida vai transcorrendo e, com ela, as consequências dos atos e escolhas de Miramar. As memórias, contudo, não tem desfecho, elas simplesmente se interrompem em mais um ato de rebeldia com relação às tradições literárias, mas sem deixar de cumprir com seu intento narrativo inovador.

Aliás, inovador é como Oswald de Andrade pode ser bem definido. De espírito inquietante e indisciplinado, o modernista nasceu de uma família tradicional paulistana teve uma vida intensa regada a esbanjamento, criatividade e inúmeras grandes paixões, dentre estas a artista plástica Tarsila do Amaral e a escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu.

Uma vida similar a que teve seu personagem. Talvez por isso Memórias Sentimentais de João Miramar é uma de suas obras máximas, dentre romances, poemas, peças teatrais e manifestos. Nela encontramos lances autobiográficos.

2 comentários:

  1. Li a resenha e fiquei doidinha pra ler Memórias Sentimentais de João Miramar. Adorei. Amanhã mesmo vou procurar uma edição desta pérola. Muito obrigada pela dica. Vânia.

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  2. Li muito Oswald de Andrade na faculdade, mas não me tornei fã dele. Também não me agradei muito deste livro, apesar de fazer um trabalho enorme sobre ele na época.Mas foi muito bom você lembrar dele. Beijos

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