sexta-feira, 13 de abril de 2012

A cegueira branca


Grandes livros são aqueles que te surpreendem do início ao fim, fazendo com que a leitura seja tão prazerosa que você não consegue parar de ler, mas, ao mesmo tempo, ao se aproximar do fim, você adia o mais que pode para não terminar o prazer da aventura. E, quando esta inevitavelmente acontece, você se sente acometido de uma espécie de depressão pós-leitura, como bem mostrou Anica, em post no blog Meia  Palavra (veja aqui), do qual destaco uma das etapas:

Segunda etapa: Insatisfação  – É para mim o traço mais marcante de que estou sofrendo de depressão pós-leitura. Sempre engato um livro após o outro. Por coincidência, sempre que passo esse momento, demora um pouco até que eu goste do livro seguinte. O triste é quando o livro seguinte tem potencial até para ser melhor, mas você está com a cabeça tão perdida no jeito de narrar do autor anterior, ou ainda, naquele universo criado por ele, que cair em outro leva um pouco mais de tempo para adaptação. É por isso que eu costumo dar uma segunda chance para obras que li depois desse tipo de livro. Porque sei que no final das contas já peguei o novo romance em mãos com uma atitude defensiva: Não, não será como o que acabei de ler.”
Ele não poderia ter definido melhor. E foi exatamente essa mistura de sentimentos citados acima que experimentei quando terminei a leitura de Ensaio sobre a Cegueira, do escritor português José Saramago. Não tem palavras: o livro é simplesmente extraordinário, um dos melhores que li.
Peguei-me totalmente envolvida com a história do início ao fim, passando a devorá-la de minuto a minuto, sem querer largar até que, ao me aproximar do fim, prolonguei o máximo que pude, para não terminar. Sair dela então? Nossa, foi difícil e nem a próxima e desejada leitura de A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan, conseguiu apagar, pelo menos no seu início.
Ensaio sobre a Cegueira foi escrito por Saramago em 1995, e publicado em 2001 pela Companhia das Letras, no peculiar estilo literário do autor: o da oralidade, com poucos parágrafos, praticamente ausência de pontuação, diálogos corridos, enfim, uma narrativa que, à primeira vista pode parecer difícil, mas que depois se traduz em um texto delicioso de se ler.
A história começa quando um motorista, parado no sinal de trânsito, descobre-se subitamente “cego”. O curioso dessa cegueira, no entanto, é que ao invés do escuro permanente, o motorista percebe tudo branco. É o primeiro caso da “cegueira branca” que, pouco a pouco, irá afetar mais gente até se espalhar por toda uma sociedade, com exceção da mulher do médico (o oftalmologista a quem o primeiro cego foi se consultar), que aqui não tem nome, assim como todos os demais personagens da história. Eles vão ser identificados como “o primeiro cego”, “a rapariga de óculos escuros”, o “velho com a venda no olho”, “o rapazinho estrábico” e assim por diante. Talvez por, se verem “cegos”, perderam sua identidade.
As duas primeiras centenas acometidas pela “cegueira branca” vão ser colocadas em quarentena, em um local isolado, vigiado por soldados, encarregados de mantê-los ali e de deixar a comida para que estes peguem. Ali, eles vão ser reduzidos à miséria humana, tendo de aprender a se virar e a sobreviver desse jeito. Nesse local, a mulher do médico, embora veja, faz-se passar por cega para também ir e acompanhar o marido, pois acredita que sua cegueira acontecerá, mais cedo ou tarde. Assim, passa a conviver com os outros, vendo-os se degradarem, mas procurando ajudá-los de alguma forma.
É curioso como Saramago escolheu para herói do seu romance uma mulher, no caso a mulher do médico. Ela é, de fato, a pedra angular de toda a trama, com sua abnegada disposição em viver com os “cegos”, enxergando suas fraquezas, baixezas  e sentimentos mais íntimos. Além da organização que passa a ser estabelecida no local, com a chegada de mais “cegos”, estes identificados como os malvados, que vão tentar tirar partido da situação, subjugando os demais e prostituindo as mulheres.
Trata-se de uma fantasia, uma terrível fantasia, em que Saramago lembra “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Um livro que choca, mexe com suas emoções, te faz pensar, te encanta e emociona, como na resposta que o amargurado velho com a venda no olho dá a rapariga dos óculos escuros, quando esta indaga por que ele quer viver com ela:
... Esperas que o diga diante de todos eles, Fizemos uns diante dos outros as coisas mais sujas, mais feias, mais repugnantes, com certeza não é pior o que tens para dizer-me, Já que o queres, então seja, porque o homem que eu ainda sou gosta da mulher que tu és...
Embora ficção, o romance faz pensar sobre os vários tipos de cegueira que temos, daquelas em que, embora tendo olhos, não vemos. Tenho para mim que as pessoas cegaram para poder enxergar melhor o mundo e quem realmente eram. No caso da mulher do médico, esta talvez seria a única que via de fato. No livro, no entanto, Saramago traduz assim, por meio de seus personagens uma possível explicação para o fenômeno:
Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.
Coisa de gênio. Falar mais é tirar a graça e o impacto da história. Mas se quiser saber o desfecho, há uma adaptação para o cinema dirigida por Fernando Meirelles, com Julianne Moore no papel principal. Agora, cá entre nós, melhor é ler o livro.
E tem mais: descobri que o livro tem uma continuação em Ensaio sobre a Lucidez, romance de Saramago publicado em 2004. Neste são retomados os mesmos personagens, por isso já estou ávida para ler.

3 comentários:

  1. Adorei tua resenha, dá vontade de tirar o livro da estante na mesma hora para degustá-lo.
    Bjs lindona

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  2. Oi Cecilia, muito bom este texto. Eu sou suspeita em comentar ou mesmo em me manifestar com qualquer assunto que e refira a Saramago, pois simplesmente eu adoro este escritor. Ensaio sobre a cegueira, eu já li e reli várias vezes, já tive até trabalho publicado sobre ele. Este é o livro, embora esse escritor possua outros melhores.
    Beijos

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  3. Não li este livro, mas vi o filme.
    Na minha opinião Saramago não tem bons livros, ou são muito bons, ou simplesmente são obras de arte.
    Relativamente ao Ensaio sobre a Lucidez é um grande livro, nesse romance todo a população ganhou consciência e foi o que foi...
    Dos vários livros que li do autor, o melhor é Memorial do Convento.

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