Quem me vê
lendo e falando sobre livros tem a impressão de que já li os principais autores
e obras da literatura... se não a universal, pelo menos a brasileira. Bem que
gostaria, mas na minha trajetória de leitora há lacunas profundas que, pouco a
pouco, venho tentando cobrir. Uma delas é a obra de Lygia Fagundes Telles, a grande
dama da literatura nacional. Pouca coisa li, mas o que caiu em minhas mãos foi
o suficiente para apreciar seu talento, como Antes do Baile Verde, livro de contos.
Publicado em
1970, os contos constantes nessa coletânea – 20 ao todo – foram escritos entre
1949 e 1969, e extraídos – exceto os inéditos de 1969 – de quatro livros da
autora: O cacto vermelho, de 1949, Histórias do Desencontro, de 1958, O jardim selvagem, de 1965, e Os 18 melhores contos do Brasil, coletânea
de trabalhos premiados no I Concurso
Nacional de Contos (Paraná), de1969.
“São contos
escritos no decorrer desses vinte anos e agora enfeixados em ordem decrescente –
os últimos serão os primeiros”, adverte Lygia no início da obra.
Os três primeiros
contos do livro – Os objetos, Verde lagarto
amarelo e Apenas um saxofone me
surpreenderam de tal maneira que não consegui parar de ler até chegar ao seu
final. Somente ali é que os desfechos, com perdão do pleonasmo, se completam
totalmente. Não pude deixar de ficar de queixo caído, pois os desenlaces, que
parecem não acontecer, são conhecidos apenas na linha final.
Em Os objetos é travado um diálogo entre um
homem e uma mulher sobre os objetos comprados, os seus valores e suas
representações. É um significativo apelo aos sentidos do existir, da função das
coisas, que passam a ter razão de ser quando são utilizadas para o seu fim:
... Veja, Lorena, aqui na mesa este
anjinho vale tanto quanto o peso de papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer
dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos
nelas é que começam a viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque
continuam. O cinzeiro recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se
impõe...
... Eles precisam ser olhados, manuseados.
Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas,
porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra. Vazio. É o peso do papel sem
papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico como aquela adaga ali fora
do peito. Para que serve uma adaga fora do peito?...
Já em Verde lagarto amarelo dois irmãos, já
adultos, conversam, o mais velho e calado, Rodolfo, e o caçula e animado,
Eduardo, que era o preferido da mãe. Sempre à sombra do irmão, Rodolfo tinha
como trunfo o fato de ser escritor, até que... Bom, é melhor ler o conto.
E Apenas um saxofone conta a história de uma
mulher velha e rica, que tinha um homem rico que a sustentava, um jovem que lhe
satisfazia e um professor espiritual com quem dormia. Apesar disso, vivia
infeliz e se indagava sempre sobre por onde andava o grande amor que tivera, um
saxofonista totalmente dedicado a ela e que satisfazia todas as suas vontades,
até mesmo as mais exdrúxulas.
Depois
destes surge Helga, igualmente
impactante pela história de um rapaz do sul do país que vai para a Alemanha e
se vê em meio à guerra. Passado tempo conhece Helga, uma mulher com uma perna
ortopédica que terá triste fim. Assim, como este os demais contos tem uma estrutura
com diálogos entre duas pessoas e giram em torno das relações humanas, do
desencanto, do amor, do casamento, do adultério, da velhice, da solidão...
Há ainda um
flerte com o realismo mágico em A caçada,
na qual um homem em visita a uma loja de antiguidades encontra uma
tapeçaria velha onde encontra alguma lembrança que não reconhece. Fica tão
fascinado com a imagem que retorna com frequência à loja para observar a
tapeçaria, sentindo-se cada vez mais atraído e como parte do objeto.
Em Antes do baile verde, conto que dá
título à coletânea, em meio aos festejos e animação do carnaval entre Tatisa,
uma moça que prega lantejoulas em sua fantasia para o baile, ajudada pela sua
empregada, esta em constante inquietação para encontrar seu homem, o pai da
moça agoniza no quarto ao lado já em proximidade da morte.
Outros contos
também são bem impressionantes, como Venha
ver o pôr do sol, no qual um rapaz suplica à antiga namorada para que se
encontrem uma vez mais. Cedendo aos apelos ela vai ao seu encontro, marcado num
lugar distante, próximo a um cemitério. Ali, ele leva a garota até o jazigo da
sua suposta família, de onde, ele diz, avista-se o mais bonito pôr do sol.
E, ainda, O jardim selvagem, no qual tio Ed casado
com Daniela, refere-se a ela como um jardim selvagem. A moça gosta de andar a
cavalo e vive constantemente com uma luva em uma das mãos. Em dado momento é surpreendida
pela empregada ao dar um tiro na cabeça do cachorro da família. Em sua defesa,
Daniela diz que o cão estava doente e, assim, colocou um fim em seu sofrimento.
Com o passar do tempo, tio Ed fica doente, e Daniela se desvela em sua
cabeceira, mas...
Lygia
Fagundes Telles é uma escritora consagrada e pioneira nos direitos da mulher.
Paulistana, estudou na Escola Superior de Educação Física e na Faculdade de
Direito do Largo São Francisco. Participou das rodas literárias que se formavam
nos cafés e livrarias ao redor da faculdade, frequentadas por Mário e Oswald de
Andrade, Paulo Emílio Sales e outros intelectuais.
Em 1982 foi
eleita para a cadeira 28 da Academia Paulista de Letras e, em 1985, a cadeira
16 da Academia Brasileira de Letras. Entre suas principais obras publicadas
estão Ciranda de pedra (1954), As meninas (1973), A disciplina do amor (1980), As
horas nuas (1989), A noite escura e
mais eu (1996) e Invenção e memória (2001).
Seu livro mais recente é Passaporte para
a China, crônicas de viagem, publicado em 2011 pela Companhia das Letras.
Lygia
recebeu diversos prêmios literários, entre eles o Jabuti (1965), o APCA (1974
e 1980) e o Camões (2005), o mais
importante da literatura em língua portuguesa, pelo conjunto de sua obra. Uma
dama; nossa dama.
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