sexta-feira, 19 de abril de 2013

Contos - e conto - de Lygia

Quem me vê lendo e falando sobre livros tem a impressão de que já li os principais autores e obras da literatura... se não a universal, pelo menos a brasileira. Bem que gostaria, mas na minha trajetória de leitora há lacunas profundas que, pouco a pouco, venho tentando cobrir. Uma delas é a obra de Lygia Fagundes Telles, a grande dama da literatura nacional. Pouca coisa li, mas o que caiu em minhas mãos foi o suficiente para apreciar seu talento, como Antes do Baile Verde, livro de contos.
 
Publicado em 1970, os contos constantes nessa coletânea – 20 ao todo – foram escritos entre 1949 e 1969, e extraídos – exceto os inéditos de 1969 – de quatro livros da autora: O cacto vermelho, de 1949, Histórias do Desencontro, de 1958, O jardim selvagem, de 1965, e Os 18 melhores contos do Brasil, coletânea de trabalhos premiados no I Concurso Nacional de Contos (Paraná), de1969.
“São contos escritos no decorrer desses vinte anos e agora enfeixados em ordem decrescente – os últimos serão os primeiros”, adverte Lygia no início da obra.
Os três primeiros contos do livro – Os objetos, Verde lagarto amarelo e Apenas um saxofone me surpreenderam de tal maneira que não consegui parar de ler até chegar ao seu final. Somente ali é que os desfechos, com perdão do pleonasmo, se completam totalmente. Não pude deixar de ficar de queixo caído, pois os desenlaces, que parecem não acontecer, são conhecidos apenas na linha final.
Em Os objetos é travado um diálogo entre um homem e uma mulher sobre os objetos comprados, os seus valores e suas representações. É um significativo apelo aos sentidos do existir, da função das coisas, que passam a ter razão de ser quando são utilizadas para o seu fim:
... Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe...
... Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra. Vazio. É o peso do papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico como aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito?...
Já em Verde lagarto amarelo dois irmãos, já adultos, conversam, o mais velho e calado, Rodolfo, e o caçula e animado, Eduardo, que era o preferido da mãe. Sempre à sombra do irmão, Rodolfo tinha como trunfo o fato de ser escritor, até que... Bom, é melhor ler o conto.
E Apenas um saxofone conta a história de uma mulher velha e rica, que tinha um homem rico que a sustentava, um jovem que lhe satisfazia e um professor espiritual com quem dormia. Apesar disso, vivia infeliz e se indagava sempre sobre por onde andava o grande amor que tivera, um saxofonista totalmente dedicado a ela e que satisfazia todas as suas vontades, até mesmo as mais exdrúxulas.
Depois destes surge Helga, igualmente impactante pela história de um rapaz do sul do país que vai para a Alemanha e se vê em meio à guerra. Passado tempo conhece Helga, uma mulher com uma perna ortopédica que terá triste fim. Assim, como este os demais contos tem uma estrutura com diálogos entre duas pessoas e giram em torno das relações humanas, do desencanto, do amor, do casamento, do adultério, da velhice, da solidão...
Há ainda um flerte com o realismo mágico em A caçada, na qual um homem em visita a uma loja de antiguidades encontra uma tapeçaria velha onde encontra alguma lembrança que não reconhece. Fica tão fascinado com a imagem que retorna com frequência à loja para observar a tapeçaria, sentindo-se cada vez mais atraído e como parte do objeto.
Em Antes do baile verde, conto que dá título à coletânea, em meio aos festejos e animação do carnaval entre Tatisa, uma moça que prega lantejoulas em sua fantasia para o baile, ajudada pela sua empregada, esta em constante inquietação para encontrar seu homem, o pai da moça agoniza no quarto ao lado já em proximidade da morte.
Outros contos também são bem impressionantes, como Venha ver o pôr do sol, no qual um rapaz suplica à antiga namorada para que se encontrem uma vez mais. Cedendo aos apelos ela vai ao seu encontro, marcado num lugar distante, próximo a um cemitério. Ali, ele leva a garota até o jazigo da sua suposta família, de onde, ele diz, avista-se o mais bonito pôr do sol.

E, ainda, O jardim selvagem, no qual tio Ed casado com Daniela, refere-se a ela como um jardim selvagem. A moça gosta de andar a cavalo e vive constantemente com uma luva em uma das mãos. Em dado momento é surpreendida pela empregada ao dar um tiro na cabeça do cachorro da família. Em sua defesa, Daniela diz que o cão estava doente e, assim, colocou um fim em seu sofrimento. Com o passar do tempo, tio Ed fica doente, e Daniela se desvela em sua cabeceira, mas...
Lygia Fagundes Telles é uma escritora consagrada e pioneira nos direitos da mulher. Paulistana, estudou na Escola Superior de Educação Física e na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Participou das rodas literárias que se formavam nos cafés e livrarias ao redor da faculdade, frequentadas por Mário e Oswald de Andrade, Paulo Emílio Sales e outros intelectuais.
Em 1982 foi eleita para a cadeira 28 da Academia Paulista de Letras e, em 1985, a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras. Entre suas principais obras publicadas estão Ciranda de pedra (1954), As meninas (1973), A disciplina do amor (1980), As horas nuas (1989), A noite escura e mais eu (1996) e Invenção e memória (2001). Seu livro mais recente é Passaporte para a China, crônicas de viagem, publicado em 2011 pela Companhia das Letras.
Lygia recebeu diversos prêmios literários, entre eles o Jabuti (1965), o APCA (1974 e 1980) e o Camões (2005), o mais importante da literatura em língua portuguesa, pelo conjunto de sua obra. Uma dama; nossa dama.

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