O
corre-corre da vida diária, muitas vezes, não nos permite parar, reparar,
refletir e tecer comentários sobre os acontecimentos do cotidiano, por mais
banais que eles possam parecer, em uma primeira vista. O destinar-se tempo para
esses exercícios de observação não é muito comum e até passam despercebidos,
mas, se feitos, provocam uma avalanche de sentimentos que julgávamos ser
incapazes de descobrir e de vivenciar.
Quando há
quase três anos cursei a pós-graduação em Jornalismo Literário essa percepção
estava mais aguçada, afinal, as aulas eram permeadas da necessidade de se
observar e sentir o mundo de forma que isso se refletisse nos textos
jornalísticos que produzíamos. Terminado o curso, pouco a pouco essa leveza e
sensibilidade foram perdendo a intensidade em mim, caí novamente na rotina, era
inevitável... até que me deparei com Deslimites.
Metáforas do Cotidiano, livro publicado pela Editora do Autor, assinado
pela jornalista Juliana Damante, que foi minha companheira de turma no curso.
O livro
traz, em sua maioria, textos extraídos do blog, de mesmo nome, que Juliana
manteve de 2007 a 2012. A necessidade de perenizar a escrita, fez com que ela
transportasse o que era virtual para as páginas impressas de um livro, como
explica no início da publicação: “Resolvi entender que o mundo virtual nada
mais é do que uma nuvem a ser apagada por um sopro erroneamente técnico. Decidi
que as páginas de um livro têm muito mais sabor do que a tela de um computador.
Falando em sentimento, prefiro o sentido das letras no papel, guardados na poeira
da estante ou à beira da cama, talvez durante um caminho, quem sabe, uma
saudade, levado em uma viagem. Dos sonhos, esse aqui é um”.
Os textos,
repletos de observações e metáforas do cotidiano de Juliana, trazem embutidos
um pouco da sua trajetória, do seu amadurecimento, da sua busca incessante pelo
sentido da vida, mas sempre carregados da sensibilidade que lhe é nata. São belas
e tocantes vivências, de coisas simples, do dia a dia, que conseguimos
vislumbrar com perfeição como no texto “Pastel de Feira”:
Terça é Feira. Enquanto as frutas
estão novas e com gotículas da água que o feirante jogou por cima, para que os
vegetais fiquem com ar de frescos e convidativos, os senhores e senhoras
arrastam os carrinhos, de feira. A criança corre atrás da pomba, gritando para
que voe, voe logo, bem alto. Depois ri... O óleo dos pastéis está borbulhante e
muitos escolhem-no para forrar o estômago de café da manhã.
Outros caminham, caminham, circulam,
olham o morango vermelho por cima e verde por baixo, a manga cheirosa, o
abacaxi já cortado em fatias suculentamente ácido, as maçãs tão perfeitas
quanto à da Branca de Neve, o cheiro forte do peixe fresco já com as moscas a
rondar, os queijos e laticínios naturais sem soda caústica, a banana amarela
cheia de pintas no ponto, a melancia vermelha inteira por dentro e verde
listrada por fora...
Em outros
textos me vi inserida por ter compartilhado a experiência com Juliana durante as
aulas da pós-graduação, como a da disciplina Pauta e Produção, do professor Edvaldo Pereira Lima, coaching do livro. A atividade se
estendeu com uma visita ao Museu da Língua Portuguesa, onde deveríamos, em
trio, escolher um personagem para acompanhar e, assim, desenvolver a técnica da
“observação camuflada”, apenas observar, sem anotar nada. Depois, de volta à
sala de aula, e utilizando a técnica da escrita rápida, deveríamos escrever o
que tínhamos registrado mentalmente da visita do nosso personagem. Eu fazia
parte do grupo da Juliana e escolhemos dois garotos para observar. Fiz apenas
um texto informativo, sendo que das três foi ela quem chegou mais perto do âmago
do exercício. Seu texto, reproduzido no livro, começava assim:
O garoto tem em média 12 anos, sabia?
E levou outro amigo. O mais importante era que, pela segunda vez, ele estava
ali. Pela segunda vez, ele repetia. Para mim, para nós e para os outros. A
sensação do momento era apertar a tela em busca das palavras indígenas. Mas
cansa. Criança cansa. Enjoa fácil de uma cena de repetição em série. Na
verdade, o prazer de João Victor, com c, era falar para todos que o amigo dele
estava ali pela primeira vez...”
Ler Deslimites. Metáforas do Cotidiano foi
uma delícia, que fiz sem notar o tempo, reavivando em mim uma sensibilidade já
adormecida para as questões simples da vida, do cotidiano, do nosso dia a dia.
Muito bom!
*A capa do livro é de Lu Matosinho, com fotografia de
Juliana Damante.
Pra quem desejar adquirir o livro acesse aqui https://www.clubedeautores.com.br/book/141294--Deslimites
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