Ler é mesmo uma viagem pelos caminhos da imaginação. Mas é também um passeio por estradas percorridas, por tempos vividos, pela infância passada, enfim pela memória. E foi exatamente isso que senti quando li A bolsa amarela, clássico da literatura infanto-juvenil brasileira, da escritora gaúcha Lygia Bojunga.
Publicado na década de 1970, no auge da ditadura militar, o livro conta a história de Raquel, uma menina que está em conflito consigo mesma e com a família. Caçula da prole, com uma diferença de idade bem distante de seus três irmãos, Raquel é cheia de vontades, das quais se sobressaem três mais fortes: ter nascido menino (porque estes têm mais privilégios), ser gente grande (porque podem tudo) e tornar-se escritora.
Naquela época, criança não tinha voz nem vez, nem os direitos tão bem assegurados hoje, depois da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente na década de 1990. Sei bem como Raquel se sentia porque também vivi minha infância nos anos de 1970, período em que costumávamos levantar dos bancos nos transportes coletivos para os mais velhos se sentarem (hoje é o contrário). A criança era mais ou menos colocada à margem, chegando a algumas ocasiões e lugarejos a não ter direito de sentar-se na mesa, junto com os adultos, para fazer suas refeições.
E é nesse panorama em que se encontra Raquel, que veste as roupas que os irmãos não querem mais, que fica com as sobras dos presentes que a família ganha, que não consegue se expressar livremente para falar de sentimentos e transformações. Daí sua imaginação fervilhante e criadora, que “inventa” personagens e dá vida a seres e objetos inanimados, como um pequeno alfinete de bebê que um dia ela encontra jogado na rua e o recolhe para abrigar em sua casa como um querido amigo.
Suas vontades, porém, é que dão o tom da narrativa. Para controlá-las, Raquel decide escondê-las dentro de uma grande bolsa amarela enviada pela tia. Em seu interior havia vários “filhos” de diferentes tamanhos, ou seja, bolsos, onde a menina resolveu esconder seus pertences – coleção de papéis com nomes de pessoas, o alfinete e, a guarda-chuva (sim, no feminino) – e as três grandes vontades. E, para todo lugar que ia, carregava a bolsa que, ora ficava pesada, quando as vontades engordavam, ora ficava mais leve, quando estas emagreciam.
Dentre os personagens criados por Raquel, destaque para o galo Rei (depois Afonso), que passou a ser seu companheiro e com o qual compartilhava muitas das suas aventuras. O galo reinava soberano num galinheiro repleto de galinhas, mas não gostava dessa sina, pois queria que as fêmeas “mandassem” também. Por sua rebeldia acabou preso para “aprender a não ser um galo diferente”. Neste ponto, a autora faz referência ao período sombrio em que a sociedade brasileira vivia, com a ditadura militar:
Me botaram num quartinho escuro. Tão escuro que quando eu saí de lá tava todo preto. Só depois é que a cor foi voltando. Fiquei preso um tempão; sofri à beça. Aí, um dia, eles me soltaram. E foram logo dizendo: “Daqui pra frente você vai ser um tomador-de-conta-de-galinha como o seu pai era, como o seu avô era, como o seu bisavô era, como o seu tataravô era – senão volta pra prisão.” E as galinhas disseram: “Deixa com a gente: se ele não se comportar direito a gente avisa.” Mas eu não era que nem meu avô, que nem meu bisavô, que nem meu tataravô, o que é que eu podia fazer? Eu sei que ia ser muito mais fácil eu continuar pensando igualzinho a eles. Mas eu não pensava, e daí?...
E é assim, mesclando o mundo real da família com seu mundo imaginário que Raquel vai tecendo seu dia a dia, em uma aventura saborosa que, pouco a pouco, leva-a a aceitar sua condição de menina e de criança. Só uma vontade prevalece: a de ser escritora. É o início do amadurecimento.
O livro foi traduzido em diversos idiomas e encenado em teatros do Brasil e da Bélgica. Recebeu da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil o prêmio “O melhor para a criança” e foi incluído na lista de honra do Ibby – International Board on Books for Young People. Ganhou, ainda, o prêmio “Hans Christian Andersen”, como parte integrante da obra de Lygia Bojunga.
Enfim, altamente recomendável.
A professora da 2a série lia esse livro para nós no início de cada aula... Saudosa professora Raquel...
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