quarta-feira, 22 de junho de 2011

Para sempre, filho!

Curitiba é uma bela e estruturada cidade, onde o moderno se mistura com o tradicional. Metrópole com leves toques de província. Urbana, mas acolhedora e aconchegante. Foi essa a impressão que tive, quando visitei a capital paranaense há pelo menos 30 anos. É isso mesmo – 30 anos. Tempo demais, mas que não apagou aquela bonita visão que tive da cidade.

De lá para cá, Curitiba cresceu, ampliou seus alcances com planejamento, tornou-se ainda mais bela e acabou ficando bem mais presente na minha vida, quer seja pelos amigos que fiz e que moram na cidade, quer seja pela excelente safra de autores que detém. Dentre estes, o poeta Paulo Leminski e os escritores Dalton Trevisan, Miguel Sanches Neto (que mora na cidade, embora tenha nascido em Bela Vista do Paraíso, interior do Paraná) e, é claro, Cristovão Tezza, 59 anos, catarinense de nascimento, mas curitibano de coração desde os oito, quando veio morar com a família na cidade.

E é dele que li, recentemente, O filho eterno, um misto de romance, autobiografia, memórias e ensaio pessoal, publicado em 2007 pela Editora Record, e que levou inúmeros prêmios (veja relação abaixo), sendo, inclusive, eleito como o livro da década pela Revista Bravo!

Todo esse know how, a boa acolhida por parte da crítica e as indicações de amigos foram um estímulo a mais para ler a obra. Mas confesso que fiquei estupefata – do início ao fim –, pois o livro extrapola – e muito – todas as previsões. É muuuuuuuuuuuuito bom! Emocionante, sem ser piegas; apurado sem ser pedante; verdadeiro sem ser cruel.

Com uma escrita primorosa, recheada de referências e lembranças, que esmiúçam detalhes da sua alma e de seus pensamentos, Cristovão Tezza expõe, com coragem, a história – sua história – de um pai que tem um filho com a Síndrome de Down. Com coragem porque não omite seus sentimentos com relação a esse, que vão desde o choque ao receber a notícia, passando pela rejeição e desejo – com alívio – que seu filho não viva muito tempo, até a adaptação e a consciência da importância do filho na sua vida.

À primeira vista, o livro pode parecer contar a história de crianças acometidas com a Síndrome de Down, quando na verdade é a história de um homem, do pai, diante dessa situação e de seu amadurecimento com relação ao distúrbio e à vida. Isto porque, na época em que seu filho nasceu, década de 1980, a síndrome era vista com bastante preconceito que lhe atribuíam a denominação de “mongoloide”, um termo que custou muito a cair em desuso.

Neste ponto, achei significativa a passagem:

“... O que ele quer resolver agora não é o problema da criança, mas o espaço que ela ocupa na sua vida. E esses contatos medonhos do dia a dia: explicar. Já viu na enciclopédia que o nome da síndrome se deve a John Langdon Haydon Down (1828 – 1896), médico inglês. À maneira da melhor ciência do império britânico, descreveu pela primeira vez a síndrome frisando a semelhança da vítima com a expressão facial dos mongóis, lá nos confins da Ásia; daí ‘mongoloides’. Que tipo de mentalidade define uma síndrome pela semelhança com os traços de uma etnia? O homem britânico como medida de todas as coisas. O príncipe Charles, aquela figura apolínea, será o padrão da normalidade racial, e ele começa a rir no escuro, acendendo outro cigarro. E como essa denominação durou mais de um século, como algo normal e aceitável?”

No livro, Cristovão vai entremeando a narrativa do nascimento e crescimento do filho – e as dificuldades e aprendizados inerentes a eles – com as lembranças de sua trajetória, suas sensações diante das intempéries, sua juventude hippie, seus estudos em Portugal, seus inúmeros livros escritos – e não publicados –, sua experiência como relojoeiro que lhe garantiram a paciência necessária para enfrentar os problemas, seu casamento, a chegada do segundo filho, uma menina, enfim, seus fracassos e vitórias, erros e acertos, tendo sempre o filho como espelho – ou reflexo, o que dá no mesmo.

É o aprender a “duras penas”, como se costuma dizer. E mais do que isso, é constatar que um filho é mais do que uma extensão da gente. Um filho, é para sempre.

Poderia terminar aqui, se não fosse um fato curioso. Quando terminei o livro, tive vontade de fazer aquilo que o filósofo alemão, Schopenhauer, colocou em seus ensaios sobre a leitura: ler uma segunda vez, porque só “entendemos bem o começo quando conhecemos o fim”. Mas ao anotar os trechos que marquei no livro para repassá-los no meu outro blog, o Leituras que não Esqueço ( http://www.leiturasquenaoesqueco.blogspot.com/ ), me deparei com esta passagem:

“Vai pondo na gaveta as cartas de recusa das editoras e engolindo em seco as derrotas dos concursos literários, mas nada disso o incomoda de fato. É como se uma ponte dele negasse o confronto desigual – melhor baixar a cabeça discreto, e tentar uma outra esquina do labirinto. O mundo é muito mais forte, impressionante e poderoso do que ele. À medida da província entranha-se na sua alma. Talvez fosse o momento de reler Nietzsche, começar de novo, mas ele não tem mais tempo. Ouve pela primeira vez rodar a engrenagem poderosa do tempo, e um discurso pó de ferrugem já transparece nos objetos que toca. Finalmente, o tempo começa a passar.”

E pensei, porque de fato o tempo é implacável. Quem sabe mais para frente eu releia O filho eterno. Por enquanto, há uma fila enorme na estante esperando a sua primeira vez.

Prêmios

Prêmio Jabuti - melhor romance
Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) - melhor obra de ficção
Prêmio Bravo! - Livro do Ano
Prêmio Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa - 1º lugar
Prêmio São Paulo de Literatura - Melhor livro do ano 2008
Prêmio Zaffari & Bourbon, da Jornada Literária de Passo Fundo - Melhor livro do biênio 2007/2008.
Prêmio Charles Brisset, melhor livro de 2009, concedido à edição francesa (Le fils du Printemps) pela Associação Francesa de Psiquiatria.

6 comentários:

  1. Texto primoroso, Cecilia, como sempre!
    O livro está na minha listinha e em breve poderei apreciá-lo. Seu texto me fez lembrar de um livro que li recentemente do Paul Auster, "A Invenção da Solidão", onde ele também retrata suas memórias só que através da relação com o pai. Muito bom!

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  2. Que lindo, Cecília! Nunca li nada da Tezza, mas depois desse teu texto deu vontade. Beijão!

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  3. Cecília, seu textos sã ótimos, mas este eu me emocionei. Acho que é por tratar de filhos. Afinal foi filho ou literatura? Bem, os dois me emocionam.
    Por várias vezes recebo seus comentários como indicação de leitura, pois bem, este eu também, não conhecia, mas preciso lê-lo.
    Quanto ao Schopenhauer, muitas coisas que ele diz devem ser seguidas, outras não, mas esta especialmente eu adoro. Pois sempre gostei de reler. Mesmo sabendo que tem uma infinidade de livros ali, esperando para ter vida. Eu sinto na releitura como a visita a um amiga, e sempre descubro coisas novas, sempre me surpreendo. é como matar a saudade.
    vou colocar este livro na minha lista: mais um!
    Beijosss

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  4. Eu li esse livro...tive a impressão de que o autor, ao escreve-lo, o fez para ele mesmo, de coração totalmente aberto. Livre de pudores, narra de maneira nua e crua todo o processo de aceitação da condição do filho.

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  5. Érika, Denise, Mônica e Fernanda.
    Obrigada pelo comentário de vocês.
    Para quem não leu, recomendo.
    Fernanda, também tive essa mesma impressão. A de que Tezza escreveu para ele mesmo, tamanha a sinceridade com que se expôs. Bjs.

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  6. Cecilia, legal teu interesse no curso de Reportagem em Quadrinhos. Quem sabe você não encontra aí alguma instituição que tope levar o curso para São Paulo?

    Bacana teu blog. Estou fazendo mestrado em Letras, tudo a ver com minhas últimas leituras.

    Beijos.

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