segunda-feira, 8 de março de 2010

Tesouro no lixo

Hoje de manhã, antes de sair para o trabalho, liguei a TV para assistir ao Bom Dia Brasil. Dificilmente faço isso, mas eu queria, na verdade, ver detalhes do Oscar 2010, a consagração de Guerra ao Terror como o melhor filme, e a premiação de Kathryn Bigelow, que tornou-se a primeira mulher a vencer na categoria direção. Um destaque e tanto – e merecido –, a ser comemorado muito, ainda mais porque hoje é o Dia Internacional da Mulher.

No entanto, as manhãs são sempre corridas e enquanto a TV estava ligada e antes do banho, eu sai com meu cachorro, arrumei minha cama, preparei meu café e só então sentei diante da telinha para acompanhar o jornal. Acabei não vendo nada do Oscar (será que já tinha passado?), em compensação, peguei o final de uma matéria que falava de livros encontrados no lixo por catadores de papel e que serviram de base para a organização de biblioteca comunitária em uma região carente.

Achei a iniciativa bem bacana e lembrei-me que, em 2004, soube de uma notícia envolvendo um riquíssimo material histórico e uma catadora de papel em São Paulo. Trata-se de uma bela história e que começa mais ou menos assim:
“Telma empurra o carrinho de supermercado lotado para dentro do pequeno jardim e entra na cozinha. Olha para o relógio de parede: seis e cinco. Hora de acordar o filho, preparar o café da manhã e levá-lo para a escola. A curiosidade vai ter que esperar.

Quando volta, não cai direto na cama como todos os dias. Tira do carrinho um dos tantos sacos plásticos que recolheu na madrugada. Sacos plásticos e outras tralhas ela recolhe aos montes. São seu sustento. Não foi isso que atraiu sua atenção. Este é diferente. Bastou uma rápida olhada dentro para perceber que ele traz pistas de uma história: documentos, fotos, um caderno com capa de couro, uma caixa de papelão cheia de pastas, tudo com jeito e cheiro de antigo. Pega uma xícara de café e se senta no sofá da pequena sala, acompanhada do saco plástico. Tira de dentro o caderno de capa de couro, abre e lê a primeira página”.

Um pequeno texto fazia a introdução das impressões e lembranças que uma mulher de 52 anos, muito doente, começava a escrever. Ao final, ela assina, não o seu nome verdadeiro, mas o apelido pelo qual ela era mais conhecida, uma surpresa – até mesmo para ela, que já não o usava há um bom tempo: Pagu.

Musa do movimento modernista brasileiro, Patricia Rehder Galvão, ou melhor, Pagu era uma mulher à frente do seu tempo e que viveu intensamente: era escritora, jornalista, poeta, desenhista, tradutora, diretora de teatro, militante revolucionária (ufa!) e uma das mais alucinantes paixões do escritor Oswald de Andrade, um dos promotores da Semana de Arte Moderna, em 1922, e com quem teve um filho: Rudá de Andrade, nome da mitologia tupi, que simboliza o deus do amor.

Por uma dessas distrações da vida, há seis anos, documentos, fotos, livros e cadernos de Pagu foram jogados em um saco de plástico azul e deixados em uma esquina do bairro do Butantã, em São Paulo. Pelo local, passava Selma Morgana Sarti com seu carrinho de supermercado utilizado para transportar os papéis que ela cata nas ruas durante a madrugada. Ela não tinha noção do que havia no saco, mas ficou curiosa e quando constatou o seu teor achava que deveria ter grande importância.

Depois de examinar o conteúdo, ler o material e ver e rever as fotos, ela entrou em contato com uma estudante que morava próxima da sua casa. Por meio dela e de um outro colega, o material foi encaminhado ao Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, onde atualmente se encontra.

Mas a sensibilidade de Selma no cuidado com o material não foi esquecida. Inspirada na sua história, a escritora Lia Zatz lançou, pela Coleção A Luta de Cada Um (destaca brasileiros notáveis que corajosamente enfrentaram inúmeros desafios em busca de um mundo melhor), o livro Pagu, falando sobre a trajetória da musa modernista.

O enredo é contado por Selma, que virou a personagem “Telma”, a catadora de papéis e objetos descartáveis que se depara com o saco plástico contendo cartas, fotos, documentos e pastas. Com esse material, Telma reconstrói a vida de Pagu, tendo como pano de fundo a capital paulista do início do século XX.

A linguagem é clara, simples e direta, com uma diagramação leve. repleta de fotos e ilustrações. O texto é delicioso, mas o mais importante é poder conhecer um pouco mais sobre essa grande mulher que foi Pagu e sua importância na história brasileira.

Relembrando Pagu faço assim uma pequena homenagem a todas as mulheres nesse dia tão especial. As nossas conquistas foram importantes, mas ainda há muito o que fazer, só faço votos para que, num futuro próximo, não precisemos mais ter um dia para sermos lembradas e respeitadas. Que todos os dias sejam o dia da mulher, assim como o dia do homem, do idoso, da criança, do deficiente, de todas as raças e de todos os povos.

3 comentários:

  1. ahh tá ficando chato eu dizer que seus textos são lindos né?

    vi a matéria das catadoras de lixo que encontram livros e conseguiram montar uma biblioteca com o material encontrado,mulheres analfabetas que aprenderam a ler sozinhas, tudo muito digno e exemplar.Bom que os livros foram encontrados por mãos tão generosas,pena que outras tiveram coragem de jogá-los fora...

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  2. esse é apenas um dos casos, imagina quanta coisa boa deve estar escondida nos lixos da cidade?
    achei otimo o bom exemplo do lixeiro/livreiro.
    bjs, Cris

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  3. Muito legal essa história, deu vontade de ler o livro. Ótima ideia homenagear Pagu no dia intenacional das mulheres...e parabéns atrasado para vc..bjs

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