sexta-feira, 11 de setembro de 2009

"Palavrão é coisa séria"

“... enquanto aprontavam o baú de José Arcádio, Úrsula se perguntava se não era preferível se deitar logo de uma vez na sepultura e lhe jogarem a terra por cima, e perguntava a Deus, sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando a sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar e não ter papas na língua como um forasteiro e de se permitir afinal um instante de rebeldia, o instante tantas vezes desejado e tantas vezes adiado, para cortar a resignação pela raiz e cagar de uma vez para tudo e tirar do coração os infinitos montes de palavrões que tivera que engolir durante um século inteiro de conformismo.
Porra! – gritou.
Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.
– Onde está? – perguntou alarmada.
– O quê?
– O animal! – esclareceu Amaranta.
Úrsula pôs o dedo no coração.
– Aqui – disse.”

Em Cem Anos de Solidão, a personagem Úrsula permite-se soltar um palavrão, depois de tantos anos se reprimindo. Ao ler essa passagem, lembrei-me de um texto que escrevi recentemente durante as aulas de Fundamentos Narrativos, no curso de Jornalismo Literário que faço. Na aula, o professor pediu para descrever o temperamento de uma pessoa que conhecêssemos bem e eu logo pensei em uma colega do trabalho, que tem um comportamento explosivo, com muitas facetas a serem exploradas, mas que no fundo tem um coração de ouro.
Escrevi um texto curto, sem pensar muito, com aquilo que vinha na mente, ficou até engraçado e o pessoal da classe gostou. Fiquei satisfeita na hora, porque dificilmente escrevo com humor, por isso admiro quem o faça.
O professor, contudo, disse para focar em apenas uma característica mais forte e colocar falas, com as frases proferidas pela personagem. Então refiz o texto. E agora, lembrando da cena de Úrsula, sinto que pela voz da minha personagem eu também cometi meu ato de rebeldia e coloquei para fora as palavras que estavam guardadas por tanto tempo dentro de mim.
Escrever, é também falar. E “falar palavrão é coisa séria”, disse certa vez o poeta José Paulo Paes (1926 – 1998).
O resultado do texto você confere aqui.

Ela chega de repente na sala e rasga o verbo:
Puta que o pariu!
Resmunga um pouco, mas depois começa a trabalhar.
Do outro lado da sala, os companheiros de trabalho aproveitam a deixa e começam a fazer piadinhas para provocá-la ainda mais. Um deles chega até a imitá-la e, fazendo-se de seu eco, acrescenta:
Puta que o pariu, seu lazarento.
Ela não deixa por menos, corresponde “gentilmente” na mesma moeda e retruca:
– Eu quero que todos vocês se
fodam!
O dia não podia começar com melhor astral. Todos riem porque é mais uma brincadeira com minha colega jornalista, que divide comigo as mazelas do trabalho na agência de comunicação.
Ela não tem papas na língua, fala o que lhe vier “na telha”, como costuma-se dizer. De dez palavras pronunciadas, oito pelo menos são palavrões.
Seguindo sua rotina diária, ela passa o dia xingando o chefe, de tudo quanto é nome e jeito, principalmente quando ele cobra por uma frase mal colocada ou um erro ortográfico nos textos publicados.
– O que ele está precisando é de uma
puta daquelas.
Depois, faz-se de vítima, culpa também os outros, diz que vai pedir demissão, que não aguenta mais ser injustiçada e que está cansada daquele trabalho.
Caralho, chega de humilhação.
É mais um drama passional.
Daqui a pouco ela alterna o seu temperamento explosivo e desbocado por um mais brando e submisso, senta-se calmamente na sua cadeira, relembra os anos que está ali trabalhando, diz que não consegue viver sem a agência e termina reafirmando seu afeto pelo chefe.
– Vai fazer o quê? Eu gosto de
merda mesmo.

2 comentários:

  1. Opa! Jornalista? Eu também!

    Adorei sua visita! Vou te linkar no meu cantinho, assim passarei aqui everyday!

    beijokas!

    ResponderExcluir
  2. Dias atrás eu enquanto escovava os dentes, porta fechada, do outro lado a Aninha falava devagarinho, salientando cada sílaba: mas...que...mer..da. Assim fez três ou quatro vezes. Nada falei, busquei na memória se ela ouviu de mim estas palavras e vi que sim. Mas que merda!
    Em um livro, o palavrão acorda a leitura, dá agilidade, imprime força, chega a nos fazer rir pela quebra de protoculo.
    Mas pelo menos nos livros os filhos mais novos não ouvem. Vou me policiar mais.

    ResponderExcluir