sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A falta que ela me faz

Não, eu não vou falar do livro de crônicas de Fernando Sabino, A falta que ela me faz, e que por sinal eu não li. O texto é outro, mas o título peguei emprestado por se encaixar perfeitamente na história que quero contar. Então, vamos a ela:

Para uma pessoa nascida na década de 1930 e que estudou até o quarto ano primário (ops!), quer dizer, até a quarta série do Ensino Fundamental, ela tinha uma caligrafia bonita, em comparação com os muitos garranchos que se vê por aí. Também, pudera, naquela época, e em muitas décadas seguintes, ter uma boa caligrafia era requisito indispensável para se conseguir um bom emprego. Hoje, com o crescente uso da Internet, isso já não tem muita importância e acredito que até as escolas, com exceção de algumas, já nem tenham mais no currículo a matéria Caligrafia. É uma pena.

Mas a letra bonita dela acabou sendo utilizada para outros fins, sobretudo para registrar as inúmeras receitas de bolos e tortas que habilmente fazia para satisfazer seus familiares. Isto porque a cozinha era o território que ela melhor dominava e não sem razão: quarta filha de uma família de sete irmãos, ela fora escalada para esse trabalho de casa desde menina, o qual desempenhava com perfeição.

Um de seus passatempos prediletos, quando moça, era dançar. Podia ser bolero, tango ou foxtrot, não importava, dançar lhe dava prazer, principalmente se a música era de um de seus cantores preferidos. Foi com ela que ouvi, pela primeira vez, Altemar Dutra, Orlando Silva, Gregório Barrios, Vicente Celestino, enfim, essa turma que ficou em um passado distante, mas que me soam tão familiares que me pego gostando.

Ela chegou a trabalhar fora, mas foi por pouco tempo. Com poucos recursos e família grande, ela não pôde continuar os estudos, mas isso não a impediu de se casar com um homem mais culto, com o qual teve três filhos. O primeiro, contudo, ela perdeu ao nascer, e só conseguiu ter sua primeira filha dois anos depois, batizada com o nome de Inês. Um ano e meio mais tarde veio a segunda: Cecilia.

Os nomes foram dados pelo marido, mas por uma dessas coincidências da vida, ela lembrou-se que, anos antes, ainda solteira, uma de suas amigas tinha uma filha de nome Cecília, que gostava muito dela.
– Quando tiver uma filha, ela se chamará Cecilia – prometeu à menina.
O tempo passou, ela esqueceu o assunto. Nem sequer havia comentado com o marido. Mas o destino acabou cumprindo a promessa, fazendo-a recordar daquele antigo trato.

Não me lembro dela lendo, a não ser orações ou as famosas receitas, mas um dia ela me surpreendeu ao perguntar, quando me viu com um livro na mão:
– Que livro é esse?
– Amor de Perdição – respondi. – De Camilo Castelo Branco.
– Eu conheço essa história. Eu a vi no cinema.
– No cinema?
– É, foi feito um filme deste livro. Faz tempo, mas ainda lembro da cena em que Teresa acena para Simão do convento.
Fiquei enternecida. Ela pode não ter lido o livro, mas sabia da história e, de certa forma, pudemos compartilhá-la juntas. Amor de Perdição gira em torno de Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, membros de família rivais da cidade de Viseu, em Portugal. Eles se apaixonam e vivem um amor impossível, à lá Romeu e Julieta, de Shakespeare.

Uma vez ela se aventurou pelo artesanato e fez diversos trabalhos bonitos, como pintura em cerâmica e em telas, casarios, vitrais. Alguns ela vendeu, outros presenteou parentes e amigos, uns poucos encontram-se eternizados nas paredes da sala da minha casa.

Em outra ocasião ela me contou de um sonho que tivera na noite anterior. Havia sonhado que fora a Barretos, cidade do interior de São Paulo em que passou boa parte da sua infância. Disse que voltara lá, já adulta, e que passeara pelas ruas tão conhecidas e familiares.
– Vi a minha casa, o caminho que fazia para chegar à escola, à igreja e a praça central. Ali avistei a loja do fotógrafo da cidade.
Lembrei-me que certa vez, ela me contara que por ocasião da primeira comunhão, tinha ido ao fotógrafo fazer uma foto, mas como não tinha recursos, acabou não ficando com o retrato.
– Meu pai, toda vez que passava por lá, pedia para ver a foto, de tão bonita que ficara – disse ela interrompendo a narrativa.
– Mas e aí, no sonho, o que aconteceu? – indaguei. – Ah, fiquei ansiosa para entrar e perguntar se a foto ainda estava guardada nos arquivos. Mas quando coloquei os pés no local, acordei – falou desapontada.

Essa era uma dúvida que ela carregava, se ainda conseguiria encontrar sua fotografia da primeira comunhão. Eu nunca entendi porque ela não voltou a Barretos para saber, já que viajar e conhecer lugares era uma de suas grandes paixões. A última, por sinal, foi quando viajamos juntas e mais duas de suas irmãs mais novas para Porto Alegre (RS), onde mora a irmã mais velha que ela não via há cinco anos. Foi um reencontro marcante de quatro irmãs, acho que mais uma despedida. Três meses depois ela partiu, hoje há exatos dois anos.

A vida é surpreendente, mas às vezes acompanhadas de vicissitudes. O que vale mesmo são os momentos compartilhados com as pessoas queridas, como ela, a D. Nair, minha mãe.


* Na foto acima as quatro irmãs reunidas (minha mãe é a primeira à esquerda, seguida das tias Irene, Terezinha e Cida). As duas últimas da direita são minhas primas, Luci e Juli).

3 comentários:

  1. Ah, que lindo, Ciça... Lindo mesmo... As nossas mães são tão importantes e isso é pra sempre. Sempre. Linda a sua Nair.
    Um beijo, querida!

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  2. Que carinho! Cicinha mesmo longe, voce continua no coraçao!
    saudades, Cris
    bjs

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  3. Adorei amor de perdição, que vinha junto, no mesmo livro, só que de cabeça para baixo, do Amor de Salvação. :)

    beijinhos!

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