segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Apesar de você


Por falar nas várias interpretações literárias, lembrei-me de uma outra, mas relativa à letra de música, principalmente por tê-la ouvido no final de semana.

Quando li, tempos atrás, Chico Buarque (Série Perfis do Rio, da Relume Dumará Editora), de autoria da jornalista Regina Zappa, uma passagem, em especial, me chamou bastante atenção: segundo a jornalista em seu livro, Chico Buarque disse algumas vezes que nunca havia feito música de protesto, com exceção de Apesar de você, composta nos anos de 1970 e, conforme ele, sua composição mais alegre. Os militares devem ter percebido esse tom de protesto, mas...

“A explicação que Chico deu aos censores sobre aquela música não devia ser muito convincente. Dizia que era simplesmente sobre um galo que acreditava piamente que o dia amanhecia por causa de seu canto. Uma noite, caiu na farra e perdeu a hora. O sol nasceu mesmo assim, apesar de você. Chico driblava a censura, mas não conseguia se livrar das interpretações que suas músicas ganhavam... Virou assunto dizer que Apesar de você tinha sido escrita para o general Médici... Saturado com as proibições, Chico tomou uma decisão e criou o nome de guerra Julinho da Adelaide”, relata Regina no livro.

Os três primeiros versos têm múltiplos significados e poderiam se referir a uma relação de autoridade entre pai-filho, patrão-empregado ou quem sabe até uma relação amorosa. Mas, à medida que avançamos a letra fica clara a posição de Chico. Eram os anos de 1970, da ditadura e repressão militar, período em que a censura vetava toda e qualquer manifestação artística que pudesse conter duplo sentido. E Chico sentiu tudo isso na pele, indo para o exílio e compondo músicas que refletiam aquele momento.

Para mim, Apesar de você é uma das músicas mais belas que Chico já fez. Acho que ele resumiu o que muitas pessoas queriam falar naquele momento. Quer lembrar?

Apesar de você

Hoje você é quem manda
falou, tá falado
não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
falando de lado e olhando pro chão
viu?
Você que inventou esse estado
inventou de inventar
toda escuridão.
Você que inventou o pecado
esqueceu-se de inventar o perdão.

Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Eu pergunto a você onde vai se esconder
da enorme euforia?
Como vai proibir
quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
e a gente se amando sem parar.
Quando chegar o momento
esse meu sofrimento
vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
esse grito contido,
esse samba no escuro.
Você que inventou a tristeza
ora tenha a fineza
de "desinventar”.
Você vai pagar, e é dobrado,
cada lágrima rolada
nesse meu penar.

Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
o jardim florescer
qual você não queria.
Você vai se amargar
vendo o dia raiar
sem lhe pedir licença.
E eu vou morrer de rir
e esse dia há de vir
antes do que você pensa.
Apesar de você

Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Você vai ter que ver
a manhã renascer
e esbanjar poesia.
Como vai se explicar
vendo o céu clarear, de repente,
impunemente?
Como vai abafar
nosso coro a cantar,
na sua frente.
Apesar de você

3 comentários:

  1. oh amiga,obrigada sempre e sempre por escrever coisas belas e que nos trazem conhecimento e discernimento!
    adoro seus textos!!

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  2. ahh chico é demais!!!
    mto boas as interpretações....eu nunca tinha parado pra pensar sobre essa música.

    bjao!

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